ET
SURREXIT
LEGERE
Durante os seus anos de vida pública e pregação, Jesus decidiu passar por Nazaré, a terra “onde tinha sido criado,” para anunciar a Boa Nova. Num Sábado, “entrou na sinagoga … e levantou-Se para ler.” Jesus explicou que Ele mesmo cumpria a profecia que acabara de ler, o que escandalizou os amigos de infância e conhecidos que lá estavam. Este é um episódio famoso (Lc 4, 16-30) que costuma ser usado para mostrar o quão difícil é evangelizar os da nossa própria casa.
No entanto, há um pormenor neste episódio que costuma escapar até aos leitores mais atentos. Diz S. Lucas que Jesus Se “levantou para ler” (“et surrexit legere”). Para nós, não é estranho que Jesus soubesse ler, pois hoje quase toda a gente sabe ler. Mas, se tivermos em conta que até aos últimos séculos a maior parte das pessoas não sabia ler, é surpreendente que Jesus o soubesse. Os próprios conterrâneos de Jesus ficaram surpreendidos. Não era ele apenas o filho de José, o carpinteiro de Nazaré? A carpintaria, apesar de exigir técnicas manuais sofisticadas, aprendia-se de mestre para aprendiz, sem livros. Na verdade, a população em geral só começou a aprender a ler há muito pouco tempo. As taxas de literacia no Ocidente só começaram a aumentar significativamente na revolução industrial, sendo que Portugal, o nosso próprio exemplo, esteve sempre muito atrás. Em Portugal, nos anos 70, um em cada quatro portugueses ainda não sabia ler.
O facto de Jesus saber ler no século I d.C. deixou um exemplo para a história. Era na Igreja que estava a maior parte das pessoas que sabia ler. S. Jerónimo traduziu a Bíblia de hebreu e grego para latim, tornando-a acessível a milhões de pessoas. S. Bento fundou os mosteiros que salvaram a cultura ocidental, preservando os escritos da Antiguidade que nos chegaram até hoje. O facto de Jesus ser carpinteiro e, portanto, de um estatuto social médio, também deixou uma marca. Por toda a história da igreja encontramos minorias a aprender a ler com a Igreja. Por exemplo, em pleno Renascimento, S. Tomás More fez questão que a sua mulher e filhas aprendessem a ler, apesar de não ser comum as mulheres dedicarem-se à vida intelectual nesse tempo. Na Idade Média, os conventos femininos eram lugares onde milhares de mulheres aprenderam a ler, para rezar e estudar teologia, e governarem as terras dos conventos. Vários dos Papas mais influentes da história da Igreja, como os Papas Sisto V e Pio V que renovaram a cidade de Roma no Renascimento, eram meros camponeses que ascenderam na Hierarquia por causa da formação intelectual que receberam com a Igreja.
Hoje, muitas pessoas associam a Igreja a uma suposta cultura retrógrada, oposta à tecnologia e ciência dos tempos modernos. No entanto, basta pegar em qualquer livro de história da ciência para se aprender que ninguém fez tanto pelo avanço da ciência como a Igreja Católica. Muitas pessoas hoje são agnósticas ou ateias por estarem convencidas de que Deus não existe. No entanto, basta pegar em qualquer livro básico de boa filosofia para se aprender que é possível provar que Deus existe só com a razão. Muitas pessoas acham que ser católico tira a liberdade e a imaginação às pessoas. No entanto, basta pegar num livro para se descobrir que alguns dos maiores escritores do século XX eram fiéis Católicos, como J.R.R. Tolkien, ou, se não eram, passaram a ser, como Evelyn Waugh.
Nesta coluna, chamada “Et Surrexit Legere,” serão introduzidos vários temas sobre a relação entre Fé, Razão e Cultura. Serão textos curtos. Mas o objectivo é promover mais leituras sobre determinados assuntos. Por isso haverá recomendações de leitura, para ser fácil estudar um tema novo e assim poder explicá-lo aos amigos, colegas e família. Claro, tal como aconteceu com Jesus, ler mais pode criar escândalo naqueles que nos conhecem melhor. Família e amigos não estão à espera que, com um simples livro, fiquemos a saber muito mais sobre Deus e o mundo, sobre Fé e Cultura. Mas é assim mesmo. Ler livros ajuda as pessoas a chegar mais longe na sua vida pessoal e na vida de serviço. Santa Catarina de Sena, uma das mulheres mais importantes da Idade Média, disse que Jesus lhe deu a graça de ler e escrever para acender fogo nos corações de muitos com as suas cartas. Nossa Senhora pediu à irmã Lúcia que aprendesse a ler e escrever para divulgar a mensagem de Fátima e levar Paz ao mundo inteiro. Deus pede isso a todos os Cristãos. O desejo interior de conhecer e amar a Deus, exige, àqueles que podem, que leiam mais. Por isso mesmo, Jesus “levantou-Se para ler.”
NCB, 14/9/2020