Thomas Joseph White, O.P.

A Primazia do Espiritual e as Obrigações da Igreja:
sobre a suspensão do culto público

Quando deliberamos sobre como a Igreja, o Estado, várias instituições e todos os indivíduos devem atravessar a crise da COVID-19, estamos de facto a deliberar sobre qual o definitivo bem comum ao qual pertencemos colectivamente. Sim, somos chamados a proteger a nossa própria vida corporal e a vida dos outros, mas também somos inclinados por natureza a participar em comunidades de amizade, de vida familiar alargada, de procura da verdade, de trabalho com significado, de emprego remunerado, de liturgia e de contemplação.

Quais são as obrigações da Igreja e dos seus colaboradores nas actuais condições do COVID-19?

Em primeiro lugar, a Igreja tem a obrigação de respeitar a saúde do corpo humano. Não devemos usar o apelo à vida espiritual ou à primazia da economia sacramental como uma desculpa para ignorar os riscos generalizados para a saúde física das pessoas humanas. Além disso, os Bispos católicos têm o direito, dentro de um juízo prudencial, de alterar os modos e as circunstâncias em que os sacramentos são celebrados para proteger a saúde das pessoas vulneráveis. Isto já foi feito anteriormente em epidemias, e há precedentes claros na tradição, até mesmo para a suspensão temporária das Missas públicas.

Dito isto, a Igreja é a única responsável pelo bem espiritual da comunidade humana e deve lembrar os católicos e não-católicos a primazia do espiritual. A Igreja insiste acertadamente que a saúde espiritual é mais importante do que a saúde corporal, sem opor as duas. Insiste, também, na importância da vida em Graça e da Caridade como o bem supremo da alma – o bem que orienta a pessoa humana para a vida eterna com Deus.

Neste contexto, a economia sacramental é o meio mais essencial, instituído por Cristo, pelo qual o Homem pode entrar e ser sustentado na vida em Graça. O Baptismo comunica a graça ao destinatário e coloca a pessoa num estado de amizade com Deus. A Confissão sacramental comunica o perdão dos pecados e a restauração ou fortalecimento da vida de Fé, Esperança e Caridade. A Eucaristia nutre esta vida, aumentando a participação da alma na Caridade. A Unção dos enfermos dá aos que sofrem, por causa da doença, maior força espiritual para suportar as provas da doença, mesmo diante da morte. Os sacramentos são essenciais para a vida durante uma pandemia. São meios essenciais de salvação e santificação que a Igreja pode e deve proporcionar, se quiser mesmo responder bem às necessidades das pessoas humanas, à luz do seu destino sobrenatural.

Duas lições de São Tomás

Na Summa Theologiae II-II, q. 26, Tomás de Aquino considera a chamada ordem da Caridade – a questão de quem deve ser amado mais, por causa da sua maior importância, na ordem da Graça – e os modos como os amores naturais são santificados interiormente pela vida em Graça. Lá, questiona se o cristão deve amar o outro pela caridade mais do que a si mesmo. Responde fazendo uma distinção significativa.

Segundo o Aquinate, cada pessoa deve amar a Deus primeiro, acima de todas as coisas, e depois a sua própria alma. Isto é particularmente verdadeiro, na medida em que cada pessoa deve reconhecer a sua própria bondade inerente de pessoa criada, enquanto vive concretamente para uma eventual união com Deus e nada deve fazer para perder essa orientação de amor divino em si mesma. Cada pessoa deve, por sua vez, desejar este mesmo bem para os outros, na medida em que estiver em seu poder. Neste sentido, o amor de si mesmo decorre do amor de Deus, e o amor da própria alma deve ser preferido ao amor ao próximo. Por outras palavras, não podemos pecar por solidariedade infame ao nosso próximo.

Ao mesmo tempo, Tomás de Aquino afirma que devemos amar a alma do nosso próximo mais do que o nosso próprio corpo. Assim, pode ser justo dar as nossas vidas, a nossa saúde corporal ou os nossos bens, se isso ajudar a salvação eterna do nosso próximo. Aqui pode-se pensar em mártires que testemunham publicamente a Cristo derramando o seu sangue, ou em capelães em tempos de epidemia ou guerra que dão as suas vidas ao serviço dos enfermos e moribundos. São Tomás pensa que estes são garantidamente actos de caridade. Eles podem muito bem ser heróicos, na medida em que a caridade leva a pessoa a agir para além dos deveres naturais de justiça ou de amizade e de acordo com um padrão mais elevado de amor divino.

Voltarei à questão da acção cristã heróica e do que é exigido de diversas pessoas nas diferentes circunstâncias e fases da vida. Por enquanto, podemos simplesmente extrair da análise de Tomás de Aquino dois princípios universais que parecem ter relação com a questão de como a Igreja deve enfrentar o desafio de exercer o seu ministério, numa época em que a COVID-19 prevalece.

O primeiro é que a saúde espiritual da alma deve permanecer uma prioridade, especialmente no exercício dos sacramentos. Isto vem no seguimento da ideia de que a alma deve ser amada mais do que o corpo e que a própria relação com Deus deve continuar, mesmo quando haja quem altere a observância da vida sacramental por motivos de medo natural. Isto não quer dizer que a celebração pública dos sacramentos não possa ser alterada de forma alguma, mas significa que eles precisam estar amplamente disponíveis.

O Baptismo e a Confissão são sacramentos fundamentais, necessários para transmitir a vida em Graça ou restaurá-la. Não é justo, nem permitido a uma diocese suspender por completo estes sacramentos. Do mesmo modo, aqueles que estão a morrer ou gravemente doentes, incluindo aqueles que têm COVID-19, devem ser visitados e têm o direito a receber os sacramentos da Unção, da Confissão sacramental e da Comunhão. As últimas visitas requerem procedimentos cuidadosos, mas certamente podem ser feitas, e as igrejas locais têm cada vez mais experiência de como fazê-las. Nos países onde faltam suprimentos médicos, deve ser uma prioridade da Igreja obter os materiais necessários para que os seus ministros possam visitar os enfermos com eficácia e segurança. De igual modo, os casais têm o direito de se casar, ainda que no meio de uma epidemia. Mesmo que devam ter um número reduzido de convidados, não lhes pode ser negado o direito de se casar sacramentalmente. De forma mais geral, os fiéis devem ter algum acesso à presença do Santíssimo Sacramento e, sempre que possível, ao Santo Sacrifício da Missa, mesmo que não possam comungar durante os períodos de maior risco.

O segundo, pelo menos algumas pessoas devem ser designadas para prover o cuidado sacramental aos outros – com risco da sua própria vida corporal, com o propósito de cuidar das almas e como testemunho público de caridade. O testemunho cristão deve ter em conta as circunstâncias. Algumas circunstâncias exigem virtude heróica, se a Igreja deseja manter um testemunho firme do amor divino.

Pode ser razoável enviar clérigos e religiosos mais jovens para lugares onde os efeitos epidémicos são maiores – de modo a proteger religiosos e clérigos idosos – e pode-se adoptar as melhores prácticas de higienização para prevenir doenças. No entanto, é necessário que estas medidas não interrompam, por si só, a possibilidade de celebração o dos sacramentos.

A suspensão das Missas públicas

É aceitável – e pode ser prudente – suspender a celebração pública das Missas em horários e lugares específicos por um tempo limitado, com vista objetivos discerníveis. Quanto mais durar esta crise de saúde pública, maior será o risco de que a situação afecte não só o corpo dos seres humanos, mas também a sua saúde espiritual a longo prazo, o estado das suas almas.

Uma população cristã que passe muito tempo sem frequentar os sacramentos ficará espiritualmente tíbia e doente de alma. Podemos pensar aqui na delicada questão da exigência de celebrar o Domingo. Esta exigência decorre do próprio Decálogo (lido à luz da Ressurreição, ou seja, transferindo o Sabbath para o primeiro dia da semana). A norma do culto dominical não é uma convenção humana, mas um preceito divino, com fundamento natural na virtude da religião e fundamento sobrenatural na virtude da Caridade.

A pessoa humana tem a obrigação natural de honrar e adorar a Deus de maneira pública e também individual. Além disso, o cristão baptizado tem uma vocação sobrenatural para reconhecer Cristo no Santo Sacrifício da Missa. Se esta práctica for suspensa temporariamente para proteger a vida humana, deve ser restabelecida assim que possível.

O discernimento prudencial neste assunto pode ser muito difícil. No entanto, pode-se indiscutivelmente distinguir entre aqueles que são menos ameaçados pela COVID-19, que podem ser solicitados em circunstâncias normais a participar na Missa regularmente, e aqueles que são mais ameaçados pela doença, que podem usar o juízo pessoal ou receber dispensas individuais de pastores. Enquanto isso, mesmo durante a suspensão da participação na celebração pública da Missa aos Domingos, os fiéis deveriam ser conduzidos pelos pastores na práctica regular da celebração dominical, seja de forma estruturada em casa, ou em visitas individuais a igrejas abertas.

Essas reflexões são especialmente oportunas agora, porque há novos surtos de COVID-19 espalhando-se por todo o mundo e reemergindo na Europa. Os governos seculares podem pressionar as igrejas locais a fechar novamente. No entanto, a realidade é que a doença pode estar com a raça humana por algum tempo, apenas com alívio limitado dado por uma vacina. Neste caso, é algo que Deus permitiu de bom grado na sua providência. Em tal circunstância, é também a Vontade de Deus que a Igreja aprenda a dar testemunho de Cristo de forma totalmente robusta e adequada neste novo tempo de desafios.

O que mudou desde Março?

Devemos relembrar que, quando a COVID-19 apareceu inicialmente, foram dados vários motivos para implementar uma quarentena muito rígida. Em primeiro lugar, havia menos conhecimento sobre a doença com a qual os governos estavam a lidar e quão mortal a doença era, ou quão rápido se poderia espalhar. É prudente nestas circunstâncias ser muito cauteloso. Em segundo lugar, os hospitais não estavam adequadamente preparados para este tipo de doença e estavam sobrecarregados. (Isto foi verdade em vários países europeus.) Em terceiro lugar, as equipas médicas que não tinha o equipamento de protecção adequado estavam a morrer em número significativo. Em quarto lugar, havia menos conhecimento de como tratar a doença e salvar aqueles que tinham casos piores e, portanto, se a disseminação fosse mais lenta, haveria tempo para encontrar as melhores maneiras de tratar a doença. Em quinto, havia uma esperança razoável, no início, de conter a propagação da doença, dados os exemplos de países como a Coreia do Sul. Alguns lugares como a Noruega e a Nova Zelândia conseguiram, de facto, algo deste tipo, de forma prolongada. Em sexto lugar, os grupos populacionais que estavam em maior risco, como aqueles em hospitais ou lares, poderiam ser mais bem protegidos se novas medidas fossem postas em práctica para protegê-los, medidas que demoraram a entrar em vigor. Poderíamos continuar a aumentar esta lista.

No entanto, à medida que a crise continua, muitos destes desafios foram resolvidos ou desenvolvidos de forma positiva. Há um maior conhecimento da doença e de como funciona, e há melhores métodos para tratar os casos e proteger os profissionais de saúde. Em muitos países, a infraestrutura médica parece ser suficiente. Pessoas e instituições vulneráveis tiveram tempo para estabelecer procedimentos de protecção bem elaborados.

Ao mesmo tempo, as ameaças a outros aspectos do bem-estar público multiplicaram-se: a ameaça ao trabalho e ao bem-estar material das famílias devido a uma economia estagnada ou desacelerada; a ameaça à educação pública de uma presença diminuída de jovens nas escolas e instituições de ensino superior; e as crescentes ameaças à saúde mental de muitos, devido ao isolamento prolongado, confinamento, aplicação de quarentena repetida ou restrição excessiva às liberdades pessoais. Quanto mais a crise durar, mais estes e outros factores devem ser levados em consideração.

Isto sugere que, enquanto a crise persistir, e especialmente se perdurar por anos, cabe à comunidade humana pensar com prudência sobre a hierarquia e a prioridade dos bens, a fim de manter um sentido equilibrado de desenvolvimento humano. Esta perspectiva prudencial equilibrada deve procurar salvaguardar a saúde corporal, com certeza, mas não para excluir outros bens essenciais que são de maior importância. Estes bens devem ser reafirmados no tempo como dimensões fundamentais de uma vida bem vivida, com vista o desenvolvimeno espiritual da pessoa humana. Isto é verdade mesmo quando vivemos constantemente diante da ameaça de morte, como de facto todos nós fazemos, e sempre fizemos.

Prudência e o Definitivo Bem Comum

O filósofo canadiano Charles De Koninck escreveu uma obra famosa, nos meados do século XX, intitulada On the Primacy of the Commom Good, na qual implicitamente discordava das concepções políticas de Jacques Maritain. Diante de governos totalitários, Maritain argumentou que a pessoa humana transcende o bem comum do Estado e, portanto, não pode ter a sua autonomia suprimida ou instrumentalizada pelo governo. Na dignidade da liberdade pessoal, cada ser humano é chamado a reconhecer as verdades sobre Deus e a solidariedade humana universal que transcendem a competência do Estado.

De Koninck estava preocupado com o facto de que esta forma de enquadrar a questão implicasse numa oposição inútil da liberdade individual à noção de bem comum. Como ele correctamente observou, o definitivo bem comum para o Aquinate não é o Estado-nação, mas Deus, e Dele descendem uma série de bens comuns menores: a Igreja e a comunhão dos santos, o cosmos, a raça humana, e dentro da raça humana, os vários estados-nação que compõem a vida coletciva dos povos. Existem muitos bens comuns, alguns maiores do que outros. Nesta perspectiva, a pessoa individual tem direitos que se devem opor às reivindicações do Estado e que este não pode ignorar. Às vezes, uma pessoa pode e deve desafiar o Estado-nação para a protecção de um bem maior. Mas, como observa De Koninck, isto é sempre para um bem comum maior: a participação no bem comum de toda a raça humana, na comunhão dos santos, na vida com Deus.

Este ponto é significativo para os nossos propósitos, porque sugere que quando deliberamos sobre como a Igreja, o Estado, várias instituições e todos os indivíduos devem atravessar a crise da COVID-19, estamos de facto a deliberar sobre qual definitivo bem comum a que pertencemos colectivamente, e em como podemos participar dessa vida colectiva de maneira prudente. Sim, somos chamados a proteger a nossa própria vida corporal e a vida dos outros, mas também somos inclinados por natureza a participar em comunidades de amizade, de vida familiar alargada, de procura da verdade, de trabalho com significado, de emprego remunerado, de liturgia e de contemplação. O destino da comunidade humana não é apenas para esta vida. É também orientado para além desta vida, para a nossa comunhão espiritual colectiva com Deus.

O nosso destino de vida com Deus não justifica negligenciar o nosso bem-estar físico, mas deve impedir-nos de viver apenas para os fins físicos. A grandeza da pessoa humana e da comunidade de pessoas provém da sua orientação para a Verdade, Bondade e Beleza transcendentes. Em última análise, estas são encontradas em Deus, mas também são possuídas de várias maneiras pela comunidade e na vida visível de comunhão da Igreja neste mundo. Consequentemente, mesmo numa pandemia, a nossa actividade deve ser motivada pelo desejo da Verdade, do Bem e da Beleza, tanto na vida cívica como na vida da Igreja. Isto deve dar forma ao modo como negociamos, protegendo os vulneráveis e salvaguardando a saúde corporal. Tudo isto para dizer que a vida e a morte no corpo são importantes, mas são apenas relativamente importantes. Nas palavras da Carta aos Hebreus: “porque não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a futura. Por meio dele, ofereçamos continuamente a Deus um sacrifício de louvor (…). Não vos esqueçais de fazer o bem e de repartir com os outros, pois são esses os sacrifícios que agradam a Deus.” (13: 14-16)

Aonde nos levam estas conclusões? Em direcção ao equilíbrio e ao realismo. Não podemos superar a morte em todas as instâncias. Embora devamos gerir a nossa crise de saúde pública da melhor forma possível, precisamos também de conceder o devido reconhecimento a outros bens. Isto não diz respeito meramente, ou principalmente, a questões de liberdade pessoal, mas a uma questão mais profunda: O que somos como seres humanos e para que devemos viver, mesmo quando nos confrontamos com a nossa própria mortalidade? Todos nós temos de responder a esta pergunta. Cada vez mais, temos de perceber que, como comunidade pública, temos uns para com os outros obrigações que transcendem as restrições da morte: obrigações para os bens públicos que são superiores ao bem-estar físico, que pertencem à vida e comunhão do espírito humano, neste mundo e no mundo vindouro. A Igreja e o Estado devem reconhecer estes bens, agora mais do que nunca.

Sobre o autor

Thomas Joseph White, O.P., cresceu no sudeste da Geórgia numa família inter-religiosa. Estudou nas Universidades de Brown e Oxford e, em 2003, entrou para a Ordem dos Pregadores. É o Director do Thomistic Institute no Angelicum, em Roma, e Professor de Teologia. Entre os seus livros incluem-se Wisdom in the Face of Modernity: A Study in Thomistic Natural Theology, The Incarnate Lord: A Thomistic Study in Christology e The Light of Christ: An Introduction to Catholicism. Em 2011 foi nomeado membro ordinário da Pontifícia Academia de São Tomás de Aquino. 

Tradução do artigo por Mariana Pacheco Loureiro 

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