5 PISTAS PARA

REZAR A NOSSA VIDA

A PARTIR DA

ENCÍCLICA “Fratelli tutti”

No passado dia 3 de Outubro, o Papa esteve em Assis, junto do túmulo de São Francisco, onde assinou e tornou pública a Encíclica Fratelli Tutti. Trata-se de um documento admirável, que o Santo Padre escreve a partir do olhar singular da Fé e que oferece ao mundo inteiro, a “todas as pessoas de boa vontade” (FT, §.6), como contributo para repensar a sociedade e o mundo. Um exercício que se torna cada vez mais urgente nestes tempos de pandemia, em que as nossas convicções colectivas têm sido tão abaladas.

Vale a pena ler e estudar a Encíclica Fratelli Tutti com este fio condutor, procurando nela critérios de discernimento sobre a política, a economia, a sociedade e a cultura. Mas, como sempre, os documentos papais também são uma oportunidade para rezarmos a nossa vida à luz dos critérios que o Santo Padre nos propõe. Aqui ficam cinco pistas para ajudar a esse exercício.

1. Informação não é sabedoria

Vivemos na era da informação. Acedemos a um motor de busca, pesquisamos por uma palavra e, em menos de um segundo, temos diante de nós milhares de resultados. Porém, “a acumulação esmagadora de informações que nos inundam não significa maior sabedoria” (FT §.50). Precisamos de critérios para navegar neste mundo; para distinguir a verdade da mentira, o importante do supérfluo, o bem do mal.

O Santo Padre desafia-nos, por isso, a redescobrir o sentido da “verdadeira sabedoria” (FT §.47). A sabedoria, que a Igreja sempre associou à ideia de prudência, é “a virtude que dispõe a razão prática para discernir, em qualquer circunstância, o nosso verdadeiro bem e para escolher os justos meios de o atingir” (CIC, §.1806).

Ora, uma virtude como esta “não se fabrica com buscas impacientes na internet” (FT §.50), mas pressupõe que se trabalhe a arte do silêncio e da humildade e que se esteja disponível para “escutar o outro” (FT §.48).

Com frequência, os filtros das redes sociais e as nossas próprias escolhas fecham-nos em círculos cada vez mais pequenos, onde só temos acesso às opiniões de quem concorda connosco. Se não reagirmos contra esta tendência, ficaremos cada vez mais reféns de um “mecanismo de «selecção»” (FT §.47) que não nos permite o encontro com a diferença e não nos ajuda a crescer na sabedoria.

H. Ossawa Tanner, Cristo e a Sua Mãe estudando as Escrituras (c. 1809)

2. Conexão não é fraternidade

Como andam as nossas relações? Vivemos mais ligados do que nunca, mas as nossas ligações virtuais não permitem aprofundar verdadeiras relações de fraternidade. Na experiência virtual, “fazem falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e faz parte da comunicação humana” (FT §.43).

Mais ainda, corremos o risco de querer criar relações que nos sejam convenientes e que não nos exijam investimentos ou sacrifícios. Relações consumistas, que nos dispensem “da fadiga de cultivar uma amizade” (FT §.43); que fazem de nós sócios que colaboram “para determinados interesses”, mas não são verdadeiramente próximos uns dos outros (FT §.102). Ligamo-nos a quem queremos, quando queremos e só enquanto queremos. E, no entanto, ao mesmo tempo que cresce o individualismo e a frieza relacional, “reduzem-se ou desaparecem as distâncias” e os pudores (FT §.42). Habituamo-nos a esquadrinhar, a espiar a vida dos outros – e também a expor-nos completamente, sem respeito pela nossa própria intimidade.

Eis uma oportunidade para, em oração, reavaliar a profundidade das nossas relações e também o modo como cuidamos da nossa intimidade – que é expressão da nossa dignidade.

Jean-François Millet, Caça Nocturna aos Pássaros (1874)

3. As nossas relações abrem-nos aos outros?

O Homem é um ser de relação. O nosso coração “está feito de tal maneira que não se realiza, não se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude a não ser no dom sincero de si mesmo aos outros” (FT §.87). A relação com os outros transforma-nos, acrescenta-nos. Por isso, importa perceber se nos relacionamos de forma saudável.

“A minha relação com uma pessoa que estimo não pode ignorar que esta pessoa não vive só para a sua relação comigo, nem eu vivo apenas relacionando-me com ela” (FT §.89). A medida justa e saudável das nossas relações é aquela que nos permite valorizá-las como um bem, mas que não nos aprisiona nelas, afastando-nos dos outros. Pelo contrário, as boas relações são aquelas que transbordam para o mundo e que nos orientam para Deus, em vez de ficarem fechadas sobre si mesmas, numa lógica auto-referencial.

O Santo Padre convida-nos a repensar as nossas relações de amizade, para que elas não se tornem “grupos fechados” (FT §.89), mas se deixem tomar por uma “progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros (…) rumo a um sentido pleno de mútua pertença” (FT §.95). E também os casais são desafiados a não viver numa lógica auto-referencial. Trata-se de um chamamento poderoso e muito directo, que ecoa ao longo da História da Igreja e que se concretiza, por exemplo, numa “generosa abertura da família a novas vidas, permanecendo em atitude de acolhimento e de serviço à vida” (EV §.97).

Ilya Repin, O Visitante Inesperado (c. 1885)

4. Pessoas sem passado são pessoas sem identidade

“Uma maneira fácil de dominar alguém é destruir-lhe a auto-estima” (FT §.52). Segundo o Papa, essa é a estratégia por detrás de algumas formas de globalização, que procuram substituir a actual diversidade de culturas por um modelo uniforme, que gere maiores vantagens financeiras.

Todavia, “não há alienação pior do que experimentar que não se tem raízes” (FT, §.53). E, se isto é verdade na vivência colectiva dos povos, também o é nas nossas vidas. Sente-se hoje o risco de um modelo “em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero” (FT, §.13), como se fôssemos seres desencarnados, que pairam fora do tempo. Se perdemos o sentido da nossa história, perdemos também a consciência de quem somos – do bem e do mal que fizemos, das alegrias e dos dissabores que atravessámos, das maravilhas que o Senhor operou em nós.

Para termos uma identidade sólida e entregue ao serviço de Cristo, precisamos de levar a cabo um trabalho minucioso de reconhecimento da nossa história pessoal, oferecendo-a por inteiro ao Senhor. Trata-se de uma tarefa complexa, na qual podemos ser ajudados pela experiência dos mais velhos, e também por ferramentas importantes que a Igreja põe à nossa disposição, como a direcção espiritual.

Está em causa a nossa liberdade. “Se uma pessoa vos fizer uma proposta dizendo para ignorardes a história, para não aproveitardes da experiência dos mais velhos, para desprezardes todo o passado olhando apenas para o futuro que essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua proposta a fim de fazerdes apenas o que ela diz? Aquela pessoa precisa de vós vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para vos fiardes apenas nas suas promessas e vos submeterdes aos seus planos. Assim procedem as ideologias de variadas cores, que destroem (ou desconstroem) tudo o que for diferente, podendo assim reinar sem oposições. Para isso, precisam de jovens que desprezem a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo através das gerações, ignorem tudo quanto os precedeu” (FT, §.13).

Gustave Courbet, À beira-mar em Palavas (1854)

5. Na salvação dos outros, joga-se a minha salvação

Esta é talvez a mensagem mais forte da Encíclica. Durante os últimos meses, enquanto o mundo se debatia com as consequências da pandemia, o Santo Padre foi repetindo que “ninguém se salva sozinho” (FT §.32). E, se isso é verdade para as sociedades, que vão descobrindo que “a mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor” (FT §.105) e que é preciso recuperar uma noção partilhada de bem-comum, é ainda mais verdade para os cristãos.

O nosso Deus, no mistério da Santíssima Trindade, revelou-Se-nos como “uma comunidade de três Pessoas” (FT §.85). Por isso, não há Cristianismo sem comunidade. A vida cristã requer “uma comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço e bens” (FT, §.35).

Pertencer a uma comunidade oferece-nos modos e lugares concretos para viver a caridade. Escapamos assim ao risco de, “sob as aparências do politicamente correcto ou das modas ideológicas, olharmos para aquele que sofre, mas não o tocarmos” (FT, §.76). Descobrimos, em vez disso, que a caridade é uma coisa muito concreta – e de que precisamos: “a única via de saída é ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores ou com os que passam ao largo, sem se compadecer” (FT §.67).

Eis uma oportunidade para rezarmos o lugar que a comunidade ocupa na nossa experiência de Fé e o modo como aceitamos a oportunidade de ajudar os outros.

H. Ossawa Tanner, A Gratidão do Pobre (1894)

António Pedro Barreiro, Outubro 2020

FT: Encíclica Fratelli Tutti
CIC: Catecismo da Igreja Católica
EV: Encíclica Evangelium Vitae

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