FÉ E CIÊNCIA

Igreja e Censura: Será que a Igreja censurava realmente a Ciência?

Hoje em dia há livros e filmes que as crianças não devem ler nem ver, porque nem tudo é adequado para todas as idades. No cinema, é sabido que certas idades não devem assistir a alguns filmes. Por exemplo, os filmes de terror não são aconselhados a crianças mais novas dado que podem assustar-se e acreditar que certas coisas são reais. Ou, na literatura, os livros de filosofia também não são apropriados para crianças porque ainda não têm capacidade para os entender. Mas será que chamamos a estas restrições censura? Até que ponto é que a censura da Inquisição não foi assim? A Igreja Católica em Portugal proibia mesmo livros? E se sim, será que isso parou o avanço científico? Como é que as coisas aconteceram mesmo?

Em Portugal, na época do Renascimento, existiam três entidades que faziam censura: a Inquisição, o bispo e o rei. Neste texto, vamos focar-nos na censura praticada pela Inquisição, dado que é alvo de muita discussão. A avaliação de uma obra literária passava pela censura preventiva, em que as três entidades a liam e decidiam se estava aprovada para publicação ou não, e, eventualmente, por uma censura repressiva, em que após a publicação do livro, alguém fazia uma denúncia e mostrava que afinal o livro não deveria ser totalmente aprovado. O povo era informado dos livros censurados através dos Índices dos livros proibidos, que se dividia em três classes. Uma dizia respeito a autores proibidos, outra a livros específicos e outra a livros de autores anónimos.

O entendimento mais comum na nossa sociedade é de que a censura da Inquisição era muito dura, incompatível com a ciência e não deixava que houvesse progressos científicos. Um dos casos mais conhecidos e falados é o caso de Galileu, mas certamente que um bom historiador da ciência saberá explicar detalhadamente como realmente aconteceu (spoiler alert: não foi queimado na fogueira como ensinam nas escolas).

Na realidade, nos Índices do século XVI da Inquisição portuguesa, as obras de teor científico representavam apenas 7 a 8% do total de obras censuradas. A maior parte da censura estava relacionada com traduções da Bíblia e comentários à mesma, obras que pusessem em causa o poder do rei e da Inquisição, obras que não fossem de acordo com os bons costumes da época e obras que pusessem em causa o livre arbítrio, ou seja, relacionadas com astrologia e artes divinatórias (visões, previsões do futuro, etc.).

Mas, além dos índices, como é que a censura era posta em prática? Em certas obras era riscado apenas o nome do autor devido à sua religião, mas a obra era depois aprovada para leitura; noutros casos era censurada apenas uma parte específica da obra por conter coisas desonestas que iam contra os bons costumes ou outra razão mencionada no parágrafo anterior. Também podia acontecer um diálogo com o autor da obra, antes da sua publicação, em que o censor o aconselhava a alterar certas palavras para que o livro pudesse ser aprovado. Por exemplo, a Galileu foi aconselhada a alteração de uma afirmação relativa ao movimento da Terra para “a possibilidade do movimento da Terra”.

Ao contrário do que muitas pessoas julgam, o objetivo da Inquisição não era censurar a ciência. Se um médico ou cientista realmente precisasse de ler um livro de medicina ou científico de autor protestante, a Inquisição apenas censurava o nome do autor mas permitia a leitura da obra, dado que tinha utilidade para o conhecimento. Muitas vezes, a censura refletia mais a religião do autor do que o seu conteúdo.

Na verdade, a Inquisição considerava sempre a utilidade do conteúdo da obra e procurava orientar as leituras no sentido do conhecimento, da busca da verdade e das coisas honestas. E quando uma obra não era aprovada, não era queimada, mas guardada e preservada.

Mas então será que a Inquisição prejudicou o ensino de ciência com a censura? A resposta é não tanto como se pensa. Se um livro fosse útil e importante para a educação, continuava a circular em formato de manuscrito. Assim, mesmo aquelas obras que por vezes eram censuradas continuavam a circular e a ser lidas.

Em contraste com a Inquisição Católica, a censura Protestante foi bastante mais rígida e dura. Após a instituição do Protestantismo, tudo o que era Católico (livros, terços, imagens) foi queimado, até pessoas. A rainha inglesa Isabel I mandou matar mais católicos do que o número de infiéis mortos pela Inquisição. Em Inglaterra não era permitido entrar nada que estivesse relacionado com o Catolicismo.

Curiosamente, estes casos de repressão ao Catolicismo não são tão falados como a Inquisição Católica. Dado que era uma cultura e religião nova, o Protestantismo teve a necessidade de se defender e posicionar contra o Catolicismo. Assim, os autores e intelectuais protestantes publicaram bastantes livros cuja narrativa favorecia os protestantes e manchava o Catolicismo. Estas obras acabaram por ser muito difundidas pela Europa, especialmente na altura do Iluminismo, por isso, grande parte da nossa sociedade não está corretamente informada sobre o que foi realmente a censura feita Inquisição Católica.

Para quem estiver interessado em saber mais sobre este assunto, aconselho a leitura deste artigo do Professor Francisco Malta Romeiras, dado que foi numa conferência deste Professor que me deparei com esta realidade que não me tinha sido bem contada quando andava na escola. “The Inquisition and the censorship of science in early modern Europe: Introduction” na revista Annals of Science, v. 77 (2020): https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/00033790.2020.1725317

Maria Castel-Branco, Outubro 2020

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