SOCIEDADE
Eutanásia e o dever de cuidar
Neste mês em que juntos – embora mais ou menos confinados – celebramos o nascimento do nosso Redentor, falar sobre a eutanásia é urgente por dois motivos. Em primeiro lugar, porque se trata de um debate que é sobre Esperança, redenção e caridade e a quadra natalícia que agora vivemos desperta-nos sempre para estas dimensões nobres da nossa humanidade. Em segundo lugar, porque os nossos deputados têm estado numa correria desenfreada para aprovar à revelia dos portugueses e da moral a legalização da morte a pedido, ou eutanásia que, por eufemismo, agora se tem designado por “morte medicamente assistida” ou “antecipação da morte”.
Por economia de espaço, neste artigo não vamos explicar porque é que a eutanásia é uma prática moralmente inaceitável. Sendo expectável que os nossos leitores sejam maioritariamente católicos, propomos antes uma reflexão sobre a (i) a eutanásia em Portugal, em particular, os problemas formais da lei que está prestes a ser aprovada; (ii) as origens do movimento contemporâneo pela eutanásia e, finalmente, (iii) apresentamos os principais documentos da Igreja sobre esta questão e as suas conclusões. Todos eles são, de qualquer modo, argumentos relevantes contra a aprovação da eutanásia em Portugal.
Se o leitor procurar compreender de um ponto de vista racional porque é que a eutanásia em si mesma é errada, recomendamos a leitura dos documentos apresentados na terceira parte deste artigo. Sem prejuízo de podermos aprofundar essa questão num futuro artigo.
1. A eutanásia em Portugal
Sem querer entrar em generalizações injustas, olhando para a nossa história política recente, percebe-se que tem havido um desrespeito reiterado não só pelo povo, como pelas próprias instituições que nos representam. Isto para não falar dos constantes atropelos à lei natural e à recta razão de que a cultura ocidental tem sido vítima, fruto da secularização revolucionária que a tem caracterizado.
Com a eutanásia está a acontecer o que aconteceu com o aborto. Enquanto o povo e as instituições democráticas reprovam a iniciativa, os liberais e os revolucionários de esquerda continuam a insistir nela. Por outro lado, a partir do momento em que há uma votação que lhes seja favorável, por alguma razão, parece que se considera a questão fechada! Se com o aborto foi assim com os dois referendos, com a eutanásia é ainda mais chocante o absoluto totalitarismo dos nossos representantes e a nossa passividade ao aceitá-lo…
Recorde-se: em Maio de 2018 a eutanásia foi chumbada pelo parlamento, numa sessão parlamentar que terá sido das mais emocionantes das últimas décadas. Fruto de um enorme empenho de muitos Católicos, da FPV e não só, que contactaram centenas de deputados um a um, para explicar o enorme erro que seria a aprovação da eutanásia, foi possível fazer com que a eutanásia não fosse aprovada. Não obstante, passado pouco mais de um ano, em Outubro de 2019, houve eleições legislativas que tiveram o infeliz desfecho de (i) um reforço do peso do PS no Parlamento e (ii) um grupo parlamentar do PSD mais favorável à eutanásia, escolhido por Rui Rio, que contrastava com os deputados da era Passos Coelho nesta matéria.
O Bloco de Esquerda não perdeu tempo. Nem um mês deixou passar para fingir que tinha algum respeito pelas instituições e, a 25 de Outubro (as eleições foram no dia 6), já estava a dar entrada no Parlamento um projecto de lei para a aprovação da eutanásia. A pressa continuou no resto do processo legislativo, e até os especialistas em bioética se admiraram com a desconsideração dos deputados pelo seu trabalho. Não fingiram respeitar as instituições democráticas, nem quiseram respeitar os especialistas. Todos apresentaram sérias dúvidas em relação à eutanásia: Ordem dos Médicos, Ordem dos Enfermeiros, Conselho Nacional de Ética para as ciências da vida, Ordem dos Advogados e o Conselho Superior de Magistratura. Não foi o suficiente. Dia 20 de Fevereiro, [a escolha da data terá sido provocação?] a eutanásia já estava a ser aprovada.
Nem sequer fizeram um esforço para fingir que estavam interessados em ouvir o povo: a eutanásia não estava no programa da maioria dos partidos e, mesmo assim, todos os proponentes da morte a pedido, à excepção da IL, rejeitaram o pedido de referendo feito por quase 100 mil pessoas, organizado em tempo record. O desrespeito pelos signatários foi expressivo, tendo sido marcado o debate sobre o referendo à pressa no meio da discussão orçamental, numa altura em que os deputados não têm tempo para analisar com seriedade os argumentos daqueles que pediram para que os alicerces da democracia fossem respeitados.
Finalmente, nem a pandemia e a irónica preocupação com os mais vulneráveis foram capazes de acalmar a fúria legislativa, e tudo está a ser feito para que ainda este ano o Parlamento torne legal a morte a pedido.
Como fica claro, do ponto de vista político, este processo está ferido de morte. Resta-nos a esperança de uma declaração de inconstitucionalidade que resolva temporariamente o problema. Sim: temporariamente, porque a fúria legislativa não acabará tão cedo. Não acabará, pelo menos, enquanto nós, cidadãos e católicos, continuarmos a votar em partidos que não respeitam os nossos valores morais, ou a abster-nos nas eleições, dando maior peso ao voto nestes partidos.
2. Uma história sinistra
A história da eutanásia é antiga. Já o juramento de Hipócrates (séc. V a. C.), na sua versão original, proibia expressamente a eutanásia ou o aborto:
“(…)Mesmo instado, não darei droga mortífera nem a aconselharei; também não darei pessário abortivo às mulheres. Guardarei castidade e santidade na minha vida e na minha profissão.”
Este juramento, tradicionalmente feito por todos os médicos, terá sido entretanto adaptado, mas não deixa de ser curioso notar que estes povos anteriores à civilização moderna, supostamente “bárbaros”, que não tinham telemóveis, computadores ou SNS, tinham, normalmente, intuições morais mais profundas que as nossas.
O debate contemporâneo em torno da eutanásia é difícil de situar. É possível que a ideia tenha surgido no final do séc. XIX, após a descoberta da morfina. Este fármaco era usado, por exemplo, em soldados feridos em batalha para serem amputados sem entrarem em choque. Então, começou a ser proposto – não por médicos – que as pessoas normais e saudáveis pudessem ter acesso à morfina. Propunham que, caso não quisessem continuar a viver, aplicassem uma sobredosagem deste fármaco. Naturalmente, a comunidade médica opôs-se, como ainda hoje, em geral se continua a opor.

De acordo com Trent Horn, que estudou a fundo esta questão, durante os anos 20 e 30 do século passado, o movimento pela eutanásia ganhou popularidade nos EUA, tendo o entusiasmo diminuído radicalmente depois da 2ª guerra mundial. Porquê? Precisamente porque depois da guerra se conheceu o terrível programa nazi de eutanásia (Aktion T4) e assim se ganhou consciência dos perigos que esta prática acarretava.
Claro que provavelmente não se fala muito nisto nas aulas de História e a memória histórica vai desaparecendo ao fim de algumas gerações. Actualmente, são raras as pessoas que se lembram da natureza totalitária deste programa ou do programa de eugenia, que foram modas há quase um século, mas que voltaram com novas roupagens e nomes mais pomposos: “interrupção voluntária da gravidez” e “morte medicamente assistida”. Nomes novos, problemas antigos.
Mas um olhar mais atento para o que acontece na Holanda e na Bélgica, devia ser o suficiente para compreender o problema.
3. E o que nos ensina a Igreja?
O magistério da Igreja sobre a inviolabilidade da vida humana desde a concepção à morte natural é conhecido e muito claro. Especificamente sobre a eutanásia, no seu entendimento contemporâneo, a principal referência, além das várias declarações dos Papas, é a Declaração sobre a Eutanásia da CDF de 1980. Com grande lucidez e experiência prática, afirma a Igreja:
“Ora, é necessário declarar uma vez mais, com toda a firmeza, que nada ou ninguém pode autorizar a que se dê a morte a um ser humano inocente seja ele feto ou embrião, criança ou adulto, velho, doente incurável ou agonizante. E também a ninguém é permitido requerer este gesto homicida para si ou para um outro confiado à sua responsabilidade, nem sequer consenti-lo explícita ou implicitamente. Não há autoridade alguma que o possa legitimamente impor ou permitir. Trata-se, com efeito, de uma violação da lei divina, de uma ofensa à dignidade da pessoa humana, de um crime contra a vida e de um atentado contra a humanidade.
Pode acontecer que dores prolongadas e insuportáveis, razões de ordem afectiva ou vários outros motivos, levem alguém a julgar que pode legitimamente pedir a morte para si ou dá-la a outros. Embora em tais casos a responsabilidade possa ficar atenuada ou até não existir, o erro de juízo da consciência — mesmo de boa fé — não modifica a natureza deste gesto homicida que, em si, permanece sempre inaceitável. As súplicas dos doentes muito graves que, por vezes, pedem a morte, não devem ser compreendidas como expressão duma verdadeira vontade de eutanásia; nestes casos são quase sempre pedidos angustiados de ajuda e de afecto.”
João Paulo II, em 1995, na encíclica Evangelium Vitae, não só reforça o ensinamento da Igreja, como declara a eutanásia como intrinsecamente má, utilizando uma fórmula que faz deste ensinamento uma verdade de Fé. Quer isto dizer que, a partir daquele momento, deixou de poder haver sequer a possibilidade de se discutir se em determinados contextos a eutanásia pode ser aceitável. O ensinamento tornou-se definitivo e não depende do contexto histórico:
“(…) em conformidade com o Magistério dos meus Predecessores e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica, confirmo que a eutanásia é uma violação grave da Lei de Deus, enquanto morte deliberada moralmente inaceitável de uma pessoa humana. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal”

É precisamente essa verdade de Fé que é relembrada pelos nossos Bispos e pela recente carta Samaritanus Bonus da CDF, aprovada pelo Papa Francisco em Junho de 2020 e que merce a nossa leitura atenta, pois responde a todas as questões que nós, como Católicos, naturalmente temos relativamente a uma matéria tão sensível como é a eutanásia.
Nesta altura do ano, em que nos recordamos da importância da família e do próximo nas nossas vidas, a leitura desta carta, que tem como pano de fundo a belíssima parábola do bom samaritano, pode ser uma boa ajuda para compreender as consequências práticas que deve ter o mandamento do amor ao próximo, mesmo nas situações mais dramáticas.
Nesta carta, podemos aprender ou recordar o que a riquíssima Tradição da Igreja e a experiência da aplicação da eutanásia nos ensinam, nomeadamente no que diz respeito à natureza do mistério do sofrimento humano e o papel da Fé na sua compreensão; ao verdadeiro significado da palavra compaixão; ou ao valor inviolável da vida humana, como base de qualquer sistema legal justo. Tem ainda um capítulo dedicado aos obstáculos culturais à compreensão da dignidade de cada vida humana, em que são explicados os erros que os apoiantes da eutanásia cometem quando falam do conceito de “morte digna” ou quando apoiam uma mentalidade individualista, impregnada nas nossas culturas. E, finalmente, tem um capítulo em que explica de forma muito detalhada e racional o ensinamento da Igreja relativamente à eutanásia, à obstinação terapêutica, aos cuidados paliativos, à sedação de doentes e ao estado vegetativo, entre vários outros aspectos muito práticos que incluem como devem actuar os sacerdotes que acompanham pessoas que pediram eutanásia ou o suicídio assistido.
Urge estudar muito bem todas estas questões, para que a nossa posição possa ser a mais lúcido e conforme aos mandamentos de Deus possível. Vale a pena recordar as palavras de Bento XVI, na sua encíclica sobre a Esperança, citadas nesta carta:
“Se ao progresso técnico não corresponde um progresso na formação ética do homem, no crescimento do homem interior (…), então aquele não é um progresso, mas uma ameaça para o homem e para o mundo”
Um Santo Natal para todos!
Bernardo Brochado