Carta e Homilia na Solenidade de São Vicente
Carta aos diocesanos de Lisboa na Solenidade de São Vicente
Caríssimos diocesanos do Patriarcado de Lisboa – leigos e consagrados, diáconos e sacerdotes – escrevo-vos no dia do nosso Padroeiro, São Vicente, também pelas circunstâncias especiais em que o vivemos, com os nossos concidadãos em geral, especialmente pelos doentes e seus cuidadores e lembrando os muitos que entretanto partiram.
De novo suspendemos as celebrações presenciais, comunitárias e públicas, dada a gravidade da pandemia e o grande perigo de contágios. Nem por isso deixamos de estar com todos e para todos, no que a caridade tem de mais radical e salvador. Cristo estava só, no alto da sua cruz, e assim mesmo nos salvou, pela totalidade da entrega. Vicente também estava só no seu martírio e também assim o seu testemunho nos alcança e alenta.
Também hoje, no combate à pandemia, cuidadores e entidades públicas e particulares se desdobram em atos abnegados de prevenção e tratamento da doença. E os testemunhos são muitos de que, recorrendo a todos os meios necessários e possíveis, é no mais íntimo de si mesmos que encontram força para prosseguir e responder a tantos casos.
Queremos estar com eles, na oração e na atuação prudente, que por isso é verdadeira. Redobraremos a criatividade para usar meios de comunicação não presencial para chegar a cada um, quer transmitindo celebrações quer por mensagens de internet ou telefone. Como Cristo naquele dia em Jerusalém, ou Vicente depois em Valência, no mesmo Espírito. O coração não tem distância.
Estamos convosco, eu e os meus colegas Bispos ao serviço do Patriarcado, em oração e companhia constantes. Acrescento nesta carta a homilia preparada para a Santa Missa que não poderei celebrar hoje na Sé. Nela procurei desenvolver a convicção acima expressa.
Irmão e amigo,
+ Manuel, Cardeal-Patriarca
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Homilia na Solenidade de São Vicente, Padroeiro do Patriarcado de Lisboa
O grão caído na terra, que continua a dar fruto
“Se o grão de trigo cair na terra e não morrer, fica só ele; mas, se morrer, dá muito fruto”. Ouvimos esta frase a Jesus, na solenidade de São Vicente, Padroeiro principal do Patriarcado e ícone ancestral da cidade de Lisboa.
Fazemo-lo no atual contexto pandémico, com todo o cuidado requerido, em atenção ao bem de todos. Tendo muito presentes os que neste momento mais lutam para minorar os seus danos e sufragando a muitos, que entretanto faleceram.
Com tudo isto, qual o eco daquela frase de Jesus? – Que reflexão sugere e que consequência induz?
Refere o grão de trigo, depois a terra onde se desfaz e finalmente o fruto, o muito fruto que alcança. Sequência imprescindível e completa, aliás comprovada em quem a enunciou. Estamos aqui, dois milénios depois da vida e morte de Jesus – pequeno grão, quase despercebido na vastíssima terra em que caiu. E o mesmo facto de estarmos aqui, confirma a verdade da frase que proferiu, correspondendo em absoluto à vida que viveu. Deu muito fruto, como quer frutificar em cada um de nós.
Nada se garantiu de fora, tudo se realizou por si. Todas as tradições evangélicas, acentuando este ou aquele aspeto da vida de Jesus, são unânimes neste ponto. O cálice que quis beber foi o da sua entrega por nós e a sede que gritou na cruz foi a que havemos de ter por Ele. Partilha total do que trouxe de Deus Pai – corpo, sangue, alma e divindade – tudo desfeito na terra que somos, para nos refazer n’Ele e com Ele.
Não desistamos de nos admirar com tal facto. Facto e não apenas ideia a concretizar talvez. Estamos aqui, ouvindo estas palavras e refazendo estes gestos, unicamente porque Alguém, já distante no tempo e afastado no lugar, caiu à terra como um grão de trigo e agora se alarga na imensa seara que somos.
Reparemos na desproporção: um só grão de trigo e uma seara depois… A única razão que explica a ultrapassagem de qualquer limite espácio-temporal encontra-se na totalidade da entrega. Qualitativa, porque assim nos deu tudo o que recebeu de Deus Pai; e quantitativa, porque morreu por todos, tornando aquela hora nona em que expirou no tempo inteiro da humanidade de antes e depois. É este o “muito fruto”, só assim alcançado.
Transportava-O um Espírito que nos legou também. Espírito que levou tantos homens e mulheres, século após século e nas mais diversas circunstâncias, a reproduzirem o mesmo movimento de entrega total, por essa terra além. Em quantos canoniza, a Igreja reconhece a entrega de Jesus reproduzida, sendo esse o devido critério. Não se guardaram nem perderam em si mesmos. Compartilharam o que tinham, desfizeram-se como grãos de trigo no rincão que lhes coube da vasta terra de todos. Muitas vezes sem ninguém, ou quase ninguém, dar por isso na altura, como aconteceu com Jesus. Reconhecidos depois, pelo fruto que tiveram e muito bem fez a tantos.
É esta a qualidade evangélica das coisas e a comprovação inegável que alcançam, à luz da Páscoa de Cristo. A vida amplia-se infinitamente quando, do princípio ao fim do seu percurso natural, se faz sobrenatural pela totalidade da entrega. Nem precisa de muito tempo, podendo consumar-se num momento, desde que seja inteiramente dom.
Assim foi com São Vicente, diácono de Cristo na antiga Saragoça, supliciado em Valência. Não sabemos muito do que foi antes. Sabemos sobretudo o que foi então, quando chegou a altura de servir os seus irmãos com o testemunho total da fé que o transportava. E, precisamente por ser total, mesmo no suplício, alcançou fama e fruto que ninguém conteve. Nem demorou muito o renome e o louvor do seu exemplo, nos sermões de Agostinho ou na poesia de Prudêncio, prova certa do fruto que alcançara.
Cabe lembrar alguns versos de Prudêncio, célebre autor hispânico do século IV para o V. Referem-se ao martírio de São Vicente e, antes de mais, à razão de o suportar, mais forte do que o suplício. Como sempre e ainda aqui, o grão de trigo desfaz-se e germina pela própria força intrínseca que detém. Íntima, inabalável e inteiramente livre. Do corpo mortal ao corpo imortal, assim confessado pela boca do mártir: «Há um outro, um outro interior / que homem algum pode ferir / livre de tudo, sereno, intacto / isento das funestas dores» (in Paulo Farmhouse Alberto, Santos e milagres na Idade Média em Portugal. São Vicente, Lisboa, Traduvárius, 2012, p. 57).
Impressiona sempre verificar nos mártires a plena liberdade com que se unem a Cristo e à sua cruz. Aí mesmo, onde nem o tormento físico tolheu a misericórdia pelos outros, do ladrão arrependido aos próprios que o matavam: «Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). Dizer assim, naquela dolorosa circunstância, só é possível quando a absoluta liberdade interior coincide com a inteira caridade em relação a todos, todos mesmo. Assim em Cristo e, por Cristo, em Vicente.
Porque aí não chegámos, é a razão também de aqui estarmos. Por intercessão de São Vicente, pedimos a liberdade que ele ganhou de Cristo, ultrapassando o pecado que nos prende pela grande caridade que nos salva. Já assim se rezava junto das suas relíquias, apenas um século passado sobre o martírio. São também versos de Prudêncio, que podemos localizar hoje aqui: «Se este dia de festa celebramos / devidamente, de palavras e coração/ se diante da proteção gozosa / das tuas relíquias nos prostramos / desce até aqui por um momento / trazendo-nos o favor de Cristo / para que as nossas almas carregadas / sintam o alívio da sua indulgência» (ibidem, p. 78). É sobretudo assim que o grão semeado dá inteiro fruto.
Quando Lisboa passou a ser portuguesa, não tardou que o nosso primeiro rei lhe trouxesse as relíquias. A nau que transportava os seus restos mortais e os corvos que os guardavam tornaram-se emblema da cidade. Mas foi a sua memória mantida que deu muito fruto nos devotos que acorreram e nas vidas que se refizeram, corporal e espiritualmente falando. Como pode e deve acontecer connosco, em torno dos restos materiais tão escassos daquela vida tão grande que assinalam. Mantem-se a desproporção evangélica: um só grão desfeito na terra, muito fruto garantido assim.
Fazemo-lo no tempo difícil que vivemos. Com Vicente, a luta era contra a idolatria que lhe queriam impor. Connosco, é contra a pandemia que rouba muitas vidas e exige tanto esforço. A idolatria definhava as almas, como a pandemia o faz hoje aos corpos. Comum é em muitos – e deve ser em todos – a determinação anímica de persistir, fiéis, solícitos e prestáveis, no que couber a cada um, por ação ou resguardo, apoiando como puder doentes e cuidadores, pessoas sós ou deprimidas, mais novos ou mais velhos. E as duas atitudes se conjugam, porque grandes atuações requerem fortes motivações – como a de Vicente, diácono e mártir. Não faltam os exemplos concretos de abnegação e serviço, em todas as frentes do combate à atual pandemia. É essa mesma entrega abnegada, por conhecida ou discreta que seja, que tem em si mesma a garantia da vitória. Pequenos grãos e fruto certo na nossa terra comum.
Diácono porque servidor; e mártir por servir até ao fim. Os nossos diáconos estão e estarão à altura do seu padroeiro. Lembramo-los também, com a estima que nos merecem pelo seu indispensável ministério. Sem esquecer tantas pessoas que, na nossa cidade e diocese, em serviços públicos ou outros, respondem hoje com tanto esforço e generosidade à crise pandémica que sofremos. Também neles podemos verificar a presença e a ação do mesmo Espírito que de Cristo passou a Vicente e, com Vicente, se expande e atua. Como grão que caiu na terra e continuará a dar muito fruto.
Lisboa, 22 de janeiro de 2021
+ Manuel, Cardeal-Patriarca