A inseminação post mortem e a mercantilização dos filhos
Bernardo Brochado
A função principal da acção política é a de promover o bem comum. A frase é óbvia e, à excepção de algum político demasiado liberal para considerar virtuoso algum uso da palavra “comum”, geralmente aceite. O problema é que, se não considerarmos a Verdade como uma realidade objectiva e independente das nossas opiniões pessoais, não é possível haver bem comum.
Não havendo um bem comum é preciso encontrar outro objecto para a política. Por um lado, há os que consideram que o bem comum é simplesmente a soma de vários bens particulares. Para estes, o homem é como uma ilha isolada e, por isso, o bem da sociedade não depende de tradições comuns, de um património cultural e moral partilhado ou do estabelecimento de uma comunidade, mas apenas de uma procura individual pelo seu bem particular, independentemente dos outros.
Depois há outros, que consideram que o bem comum é alcançado quando os indivíduos cancelam a sua vontade individual em prol do colectivo. Estes pregam que o todo é superior às partes que a compõem e, por isso, anulam as liberdades individuais e exercem coação de modo a que todos sirvam o Estado (leia-se os governantes). Esta visão resulta invariavelmente em tirania, daquelas que existiram ao longo do séc. XX e que tão más recordações nos deixaram.
Hoje, um pouco por todo o mundo ocidental, vivemos num sistema híbrido que vai buscar as piores características aos dois modelos descritos. Com efeito, vemos os nossos governantes a defender, ao mesmo tempo, uma total autonomia funcional e uma total submissão do pensamento.
Parece um oxímoro, mas não é.
O Governo faz tanta questão que o indivíduo A seja livre de fazer o que entende, que proíbe expressamente todos os outros indivíduos de terem a opinião de que o que o indivíduo A quer fazer pode ser lesivo para a sociedade ou para o próprio. O Governo é absolutamente liberal quanto à vontade do indivíduo, mas absolutamente tirânico quanto ao seu pensamento. Esta lógica (ou falta dela) chega ao absurdo de ir até contra a própria lei, visto que se há um indivíduo que quer fazer algo que é ilegal, então é porque chegou a hora de mudar a lei. E vamos (sobre)vivendo nesta distopia.
Aconteceu assim com o aborto, aconteceu assim com o “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, aconteceu assim com a PMA, com a adopção por pessoas do mesmo sexo, com as barrigas de aluguer, aconteceu de forma gritante com a eutanásia; com o caso dos miúdos de Famalicão que não iam à aula de doutrinação – perdão – de “cidadania”; acontece com a chamada ideologia de género. Os exemplos sucedem-se a um ritmo diário.
Visto que ainda há pouco tempo falámos da questão da eutanásia, hoje falaremos sobre outro exemplo também mediático.
No início de 2020, a TVI transmitiu uma mini série com o sugestivo título de “Amor sem fim”. A série conta a história de dois jovens – Ângela e Hugo – que se apaixonaram e que sonhavam poder ser pais. Infelizmente, Hugo tinha um cancro grave e acabou por morrer. É uma história com um desfecho triste, que nos impele a ter compaixão.
Mas a história não acabou aqui. O jovem, que já tinha sido pai, queria ter um segundo filho, desta vez, com Ângela. Como não podia, congelou sémen, para que Ângela pudesse engravidar por inseminação artificial, mesmo depois da morte de Hugo. Em Portugal, como na maior parte dos países do mundo, a lei não permite este procedimento, conhecido como inseminação post mortem e, por isso, Ângela decidiu lutar por um direito que considera ter: o de poder ter um filho de um homem morto.
Não foi a primeira vez que se ouviu falar de uma história deste género. Em 1997 houve um caso parecido no Reino Unido que se tornou famoso. Anos antes, em 1984, houve outro caso semelhante em França que foi debatido à escala global. Mais recentemente, em 2016, soube-se da história de um jovem militar dos Estados Unidos que teve um acidente fatal de mota e da sua companheira que queria ser mãe, mesmo depois da morte do companheiro. Essa história reacendeu o debate.
A narrativa varia, mas no essencial, trata-se sempre de um casal jovem que por algum motivo – de doença ou outro – não conseguiu ter um filho antes da morte do elemento masculino da relação. Por vezes existia a vontade explícita do homem, outras vezes, não. E é nesta ideia que a discussão se tem vindo a centrar.
Se estudarmos este assunto vemos que há duas grandes questões em discussão. Uma primeira que se centra na extracção do gâmeta. É legítimo extrair gâmetas após a morte, questionam. Uns países dizem que não, outros que sim, quando existiu vontade explícita do morto e, outros ainda, dizem que basta haver uma vontade implícita.
No caso em análise, não é este o problema, visto que a extração já havia sido feita. Aqui, a questão era se é aceitável utilizar o gâmeta de um homem morto para provocar artificialmente uma gravidez.
A TVI transmitiu, o programa do Goucha entrevistou e a petição nasceu. Ao contrário do que aconteceu com a petição da eutanásia – em que um conjunto mais vasto de pessoas apelava ao respeito pela sua liberdade de consciência – neste caso, como se tratava de autonomia funcional, nem foi preciso perder muito tempo. A lei não permite e há um indivíduo que deseja? Altere-se a lei!
A 17 de Fevereiro de 2020 (a série da TVI foi para o ar no dia 3 desse mês), dá entrada na AR a iniciativa legislativa de cidadãos, promovida por Ângela, com o objectivo de tornar legal a inseminação post mortem. A 2 de Março entra o projecto de lei do PS no mesmo sentido, segue-se, a 6 de Março, o projecto de lei do BE e, a 16 de Outubro, foi a vez do PCP. Estes projectos foram discutidos na generalidade a 23 de Outubro, tendo sido aprovados com votos contra do PSD, CDS, a ausência do CH e algumas abstenções do PS.
Pedida a opinião aos especialistas, eles manifestaram-se essencialmente contra estes projectos de lei que eram ad hoc, mal legislados e feitos à pressa. Na sua fúria progressista, a deputada do PS Elza Pais deixou claro que, embora a opinião dos especialistas seja desfavorável, “Os projectos foram aprovados na generalidade; não há como não introduzirmos estes avanços” (sic). É o “avanço”, seja lá o que isso for, que move esta gente e não a discussão livre de ideias. Já noutra altura se falava do “grande salto para a frente”, com os resultados desastrosos que se conhecem.
Qualquer semelhança com o processo legislativo da eutanásia, é pura coincidência. Ou não.
Os pareceres dos especialistas são públicos e podem ser consultados por quem estiver interessado. Uns falam da distinção entre o uso dos gâmetas ou a transferência do embrião post mortem, outros da importância dos prazos para a inseminação. Alguns falam da autorização do dador e há os que apontam para o facto da retroactividade da lei não permitir que Ângela beneficie dela, mesmo que a lei venha a existir. Todas estas opiniões estão feridas à partida quando aceitam que, com este ou aquele cuidado, se possam utilizar métodos de inseminação artificial. De facto, a caixa de Pandora, nesta matéria, não foi aberta por Ângela, mas com a aprovação da PMA em 2006.
Discutir os cuidados a ter com a PMA é tentar tratar sintomas em vez de atacar a raiz do problema. De pouco nos vale tentar minimizar os abusos que podem surgir, porque a experiência histórica demostra-nos de forma evidente que quando se abre a porta a uma “pequena violação” da lei natural, é uma questão de tempo até se instalar o caos. É aquilo a que se chama o perigo da “rampa deslizante”. E, se isto é verdade para qualquer violação da lei natural, no caso da lei da PMA a rampa deslizante é particularmente inclinada.
Recorde-se: altura em que a PMA foi aprovada, em 2006, embora a lei já fosse má, era claro o consenso de que a inseminação artificial e a FIV post mortem eram inaceitáveis, de que as barrigas de aluguer eram inaceitáveis, que as técnicas de PMA deviam ser utilizadas em exclusivo por pessoas de sexo diferente numa relação estável e em casos em que havia problemas de infertilidade e, sempre, numa lógica subsidiária. No entanto, não tardou muito até que, uma a uma, estas limitações – que eram, à data, linhas vermelhas absolutas e que estiveram na base da aprovação da lei da PMA pela maioria dos votantes – fossem ultrapassadas pela fúria legislativa dos que querem, a todo o custo, introduzir “avanços” na legislação.
Findo o Governo PSD/CDS, mal chegou a “geringonça”, em 2015, iniciou-se o atropelo às linhas vermelhas. Logo em 2016, caiu o requisito da infertilidade para o acesso à PMA e o requisito de apenas os casais (de sexo diferente, entenda-se) terem acesso a estas técnicas. Mais tarde, nesse mesmo ano é regulado o acesso às barrigas de aluguer (que depois veio a ser considerado inconstitucional). E, em 2017, na quarta alteração à lei da PMA, o Estado dá o poder aos directores dos centros de PMA de destruírem os embriões humanos congelados. É importante recordar, quanto a este ponto, que em 2005 foram muito debatidas as preocupações relativas ao destino dos embriões não utilizados. Foi essa preocupação, sobretudo, que levou ao voto contra do CDS[1] a todas as iniciativas legislativas de regulação da PMA. Poucos anos foram necessários para se ver que era uma miragem “produzir apenas os embriões necessários para causar uma gravidez”, como na altura foi pedido.
Estamos prestes a dar mais um passo em direcção à total arbitrariedade legal. Hoje falamos da inseminação post mortem, mas podíamos estar a falar de clonagem humana ou de engenharia genética. Se não atacarmos a raiz do problema, estremos rapidamente a viver no “Admirável mundo novo” de Huxley, como alertava muito bem, já em 2005, o deputado António Carlos Monteiro no debate na generalidade da lei da PMA.
Aconteceu o mesmo fenómeno de “rampa deslizante” com o aborto. A desculpa para a legalização do aborto sempre foi “os riscos para a vida da mulher” quando recorria ao aborto em clínicas clandestinas ou a indignidade de as mulheres serem presas por matarem os seus filhos por nascer, por se encontrarem em situações desespero. Tanto quanto me recordo, não havia à data registo em Portugal nem de um, nem de outro. De qualquer modo, com muita luta, a lei avançou. Qual foi o resultado? O aborto tornou-se um mero método contraceptivo, sendo utilizado repetidas vezes pelas mesmas pessoas. Usando como exemplo os dados do último estudo da FpV, a realidade é alarmante: 96,6% dos abortos acontecem por opção da mulher e é três vezes mais provável que um terceiro filho seja abortado que um primeiro ou segundo. É empírico, em suma, que o aborto em Portugal não serve para responder às desculpas que o levaram a ser aprovado.
Já repararam quem são as principais vítimas destes vanguardismos legislativos? São – sempre – os mais indefesos, entre os mais indefesos da nossa sociedade. Os que não têm voz. Por um lado, os mais pobres a quem, em vez de serem dadas as condições para não sentirem necessidade de cometer loucuras como a eutanásia ou o aborto, são empurrados para essas soluções, muito mais “eficazes” do ponto de vista estritamente económico para o Estado. Por outro lado, os bebés, que não têm voz, nem força para se defenderem. É sempre assim. Quando não há moral – que é o que nos distingue dos animais – impera a lei da força. Os mais fortes, os mais ricos, os com mais poder dominam sobre os mais fracos, mais pobres e esquecidos.
É precisamente isso que acontece com a PMA. Quando Deus, na sua infinita sabedoria, fez com que os filhos nascessem no seio de uma família, não foi por acaso. Se repararmos com atenção, o ser humano é o mais dependente entre todos os animais. Nenhum de nós sobrevive sozinho e menos ainda quando somos recém-nascidos. Quando nascemos, não éramos capazes de desempenhar nenhuma das funções básicas de sobrevivência. Do ponto de vista material e espiritual.
Transpondo a natureza humana para a lei, fica então claro que são os filhos que têm o direito a ter pais e nunca os pais que têm o direito a ter filhos. Quando muito, os pais têm o direito a tentar ter filhos. No entanto, os filhos devem ser sempre encarados como um dom do qual nenhum de nós é digno e nunca, jamais, como um direito, ou pior, como uma mercadoria.
Infelizmente, é isto mesmo que a PMA proporciona. Ainda que inconscientemente, ao separarmos artificialmente a geração de vida do ato conjugal, estamos a transformar um dom numa mercadoria. O novo humano, deixa de ser gerado pelo amor sincero entre marido e mulher, para ser produzido pela frieza da técnica laboratorial, da caixa de petri, das pipetas e das cânulas.
Não se trata de insensibilidade para com o sofrimento de uma mulher ou de homem que sofrem com algum problema de infertilidade. É um sofrimento que só pode ser compreendido por quem por ele passa e que merce a nossa compaixão, apoio e, naturalmente, oração. Trata-se antes de um imperativo da Verdade. De nos confrontarmos com a dura – mas libertadora – verdade de que não somos Deuses, não temos autonomia absoluta sobre nós, sobre o nosso corpo e sobre a nossa vida, menos ainda, sobre a vida de outros, como é o caso dos filhos. Temos, em especial como Católicos, de confiar nos desígnios da Providência e deixar nas mãos de Deus os nossos sofrimentos, certos de que, se Ele os permite é porque daí advém algum bem.
A Igreja esclarece, num excelente e muito bem fundamentado documento da CDF, que
[A] fecundação é querida licitamente quando é o termo de um «acto conjugal de per si apto para a geração da prole, ao qual, por sua natureza, se ordena o matrimónio, e com o qual os cônjuges se tornam uma só carne». Mas do ponto de vista moral a procriação é privada da sua perfeição própria quando não é querida como o fruto do ato conjugal, isto é, do gesto específico da união dos esposos.
Quanto à FIV, mais à frente, o documento clarifica que, mesmo no caso em que é homóloga (i.e. em que são usados os gâmetas do marido e mulher), dentro do casamento, mesmo não havendo destruição de embriões (o que parece ser impossível) e, mesmo sem haver recurso à masturbação para obtenção dos gâmetas masculinos, a FIV continua a ser moralmente inaceitável:
(…) [A] Igreja permanece contrária, do ponto de vista moral, à fecundação homóloga «in vitro»; esta é, em si mesma, ilícita e contrária à dignidade da procriação e da união conjugal, mesmo quando se tomam todas as providências para evitar a morte do embrião humano.
A inseminação artificial, em bom rigor, exige nuances, mas a Igreja é clara. Ensina a Igreja que, a ser utilizada, só se esta não acontecer em substituição do acto conjugal dentro do casamento, ou seja, apenas pode ser usada como um auxílio do acto conjugal. Quer isto dizer, por exemplo, que a Igreja não afirma peremptoriamente que métodos como a transferência intratubárica de gâmetas (“GIFT”) seja errada (ou certa), pelo que, na medida em que puder ser vista como um auxílio (e não uma substituição) do acto conjugal, pode ser considerada lícita, ficando essa decisão a cargo do juízo prudencial de uma consciência bem formada[2]:
A inseminação artificial homóloga, dentro do matrimónio, não pode ser admitida, com exceção do caso em que o meio técnico resulte não substitutivo do ato conjugal, mas se configure como uma facilitação e um auxílio para que aquele atinja a sua finalidade natural [, a procriação].
Por fim, diria que um critério bom e simples de discernimento sobre quais métodos são ou não aceitáveis no tratamento da infertilidade pode ser encontrado na secção 12 de outro excelente documento da CDF (destaques meus):
(…) [S]ão de excluir todas as técnicas de fecundação artificial heteróloga e as técnicas de fecundação artificial homóloga que substituem o acto conjugal. Ao contrário, são admissíveis as técnicas que se configuram como uma ajuda ao acto conjugal e à sua fecundidade.
Assim, podemos concluir dizendo que a grande discussão que existe em torno da inseminação post mortem não se responde apenas com a indicação das necessárias salvaguardas que evitem um descarrilamento ainda mais rápido rumo à arbitrariedade jurídica. Isso é apenas um paliativo muito temporário. Urge, sobretudo, compreender e explicar os riscos morais para a humanidade que qualquer método de PMA tem, quando não respeita a dignidade inviolável da pessoa e substitui o amor entre marido e mulher como fonte única e privilegiada de vida.
Bernardo Serrão Brochado
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[1] Embora existisse um grupo de deputados dentro do CDS que, tendo seguido a disciplina de voto, fez uma declaração de voto a manifestar a sua abertura em relação à regulamentação da PMA, o CDS foi o único partido que votou sempre contra todos os projectos de lei, tanto na generalidade, como na votação final global. Infelizmente, mais recentemente, o partido parece ter aligeirado a sua posição quanto à matéria de fundo, tendo promovido iniciativas legislativas que vão no sentido de alargar o acesso à PMA. É lamentável que assim seja.
[2] Naturalmente, uma eventual utilização lícita da GIFT implica sempre que esta ocorra dentro do matrimónio, com gâmetas recolhidos na sequência de uma relação conjugal completa.