Como pode a Igreja defender a Democracia?

Sendo uma instituição milenar, a Igreja já conviveu com os mais variados tipos de regimes políticos, desde pequenas comunidades praticamente apolíticas a complexos sistemas de governação de cariz imperial como aconteceu no final do Império Romano, ou na conturbada história do Sacro Império Romano-Germânico. Entre os vários regimes, a Igreja já conviveu em formatos em que as “duas espadas” estavam mais ou menos separadas como no caso dos Estados Papais, precursores do actual Estado do Vaticano, ou nos regimes laicos modernos, tipicamente de inspiração democrática.

A Igreja tem, por isso, muito clara a ideia de que não há regimes ou sistemas políticos perfeitos. A evolução dos tempos e os contextos específicos de cada cultura política podem dar origem a diferentes noções de qual é a melhor forma de ordenar uma determinada comunidade política.

Assim, durante a Idade Média, por exemplo, fruto do contexto específico, por um lado, de transição do império Romano para diferentes Estados e, por outro da existência um “inimigo comum” que invadia a Península Ibérica, a Itália e os Lugares Santos, havia a necessidade de sistemas políticos mais musculados que tiveram a bênção da Igreja. De igual modo, principalmente após o terror dos regimes totalitários do séc. XX, a Igreja tem sido clara no seu apoio ao modelo democrático. É até enfática, de resto, a condenação do Concílio Vaticano II aos regimes totalitários ou ditatoriais: «É (…) desumano que a autoridade política assuma formas totalitárias ou ditatoriais, que lesam os direitos das pessoas ou dos grupos sociais.» (CVII, Constituição Gaudium et Spes, n. 75)

Os tempos que correm, no entanto, ajudam a compreender porque é que a Igreja, apoiando a democracia, não deixa de reconhecer os perigos que este sistema representa em determinados contextos. Nem é preciso ir muito longe buscar exemplos: só em Portugal, no espaço de um mês (Março de 2021), há dois exemplos infelizes dos perigos da Democracia – ou de um mau entendimento de Democracia.

Começando com os exemplos, no dia 15 de Março foi conhecido o acórdão do Tribunal Constitucional sobre a polémica Lei da Eutanásia, sobre a qual já tivemos a oportunidade de falar com alguma profundidade num artigo anterior. Embora o documento tenha trazido algum alívio muito temporário a todos os que lutavam contra esta lei iníqua, a verdade é que este alívio teve um sabor agridoce. Isto porque os juízes daquele tribunal violaram o “princípio do pedido” e decidiram declarar que a eutanásia, como conceito, era conforme à Constituição. Algo que não tinha sido questionado pelo Presidente da República.

Não é preciso ter qualquer qualificação em Direito para compreender que a Eutanásia não é de forma alguma conforme à Constituição, que no seu artigo 24.º diz que «A vida humana é inviolável» (sic) e que a pena de morte não é admissível. Note-se, a Constituição podia dizer que o “direito à vida” deve ser garantido a todos os cidadãos, o que faria com que houvesse a necessidade de clarificar o que é o “direito à vida”; a Constituição até podia dizer que “se for essa a vontade dos cidadãos, a vida humana é inviolável”. Mas não diz. Diz claramente que, independentemente de se tratar de uma pessoa inocente ou culpada, a sua vida não pode ser violada. Não há qualquer margem para nuances ou interpretações.

Passados dez dias, i.e., no dia 25 de Março, outra lei que já tinha sido aqui abordada, é aprovada em votação final global. Trata-se da “inseminação post mortem”, uma lei que, dá às pessoas o direito de fazer nascer uma criança órfã de pai. Ou seja, aquilo que normalmente é uma tragédia, transforma-se, agora, numa opção, como bem observou o Pedro Vaz Patto neste artigo de opinião. E aquilo que ainda é mais peculiar em toda esta história é que, em 2005, quando foi discutida a lei da PMA, deixou-se propositadamente de fora esta possibilidade da “inseminação post mortem” e agora, passados 16 anos, nem foi pelo habitual vanguardismo legislativo das esquerdas que nos lembrámos de deixar cair o que ainda há uns anos eram “linha vermelhas”, bastou uma série da TVI para se fazer imediatamente uma lei ad hoc.

Qualquer um dos exemplos anteriores mostra aquela que é, talvez, a maior fragilidade da Democracia. É que, numa Democracia, existe o risco de existirem decisores políticos a votarem leis imorais, visto que o critério para a lei não é a sua conformidade com a razão ou com a verdade, mas apenas que esta tenha um apoio maioritário A verdade é o que é, quer tenha um voto, maioria simples, ou unanimidade. O voto maioritário não torna matérias imorais em morais, mentiras em verdades, ou erros em virtudes. Por isso mesmo existem mecanismos como a separação de poderes, ou as próprias constituições que garantem (ou deviam garantir) que há direitos fundamentais (como a vida, a liberdade de expressão e de consciência, etc.) que não são violados por maiorias parlamentares.

Mas os exemplos dados ilustram que, havendo vontade política, nem a separação de poderes, nem uma Constituição que afirma a inviolabilidade da vida humana é capaz de defender esses direitos fundamentais. Com o aborto, arranjou-se o argumento absurdo que o embrião, sendo um ser humano, não é uma “pessoa humana”. Com a Eutanásia, não havendo a possibilidade de dizer que um idoso não é uma “pessoa humana” inventou-se esta desculpa criativa de que “o direito à vida não é uma obrigação de viver”.

Como pode então a Igreja, que afirma que a Verdade é objectiva e não definida por votações ou modas, defender um regime como a Democracia?

É que a Igreja não defende a Democracia genericamente, mas uma definição clássica e muito concreta de Democracia e que, por isso mesmo, está sujeita a determinadas condições para funcionar plenamente (ênfase meu):

A liberdade política não é nem pode ser fundada sobre a ideia relativista, segundo a qual, todas as concepções do bem do homem têm a mesma verdade e o mesmo valor, mas sobre o facto de que as actividades políticas visam, vez por vez, a realização extremamente concreta do verdadeiro bem humano e social, num contexto histórico, geográfico, económico, tecnológico e cultural bem preciso.

(…)

A Igreja é consciente que se, por um lado, a via da democracia é a que melhor exprime a participação directa dos cidadãos nas escolhas políticas, por outro, isso só é possível na medida que exista, na sua base, uma recta concepção da pessoa. Sobre este princípio, o empenho dos católicos não pode descer a nenhum compromisso; caso contrário, viriam a faltar o testemunho da fé cristã no mundo e a unidade e coerência interiores dos próprios fiéis. A estrutura democrática, sobre que pretende construir-se um Estado moderno, seria um tanto frágil, se não tiver como seu fundamento a centralidade da pessoa. É, aliás, o respeito pela pessoa que torna possível a participação democrática.[1]

Compreendemos assim que, quando afirmamos que a Igreja defende a Democracia, não dizemos que a Igreja a defende incondicionalmente. Sem uma “recta concepção de pessoa” a via democrática não é possível. Aliás, S. João Paulo II, numa das mais importantes encíclicas da história da Doutrina Social da Igreja, afirmava precisamente que, sem valores, não existe uma verdadeira Democracia, mas uma tirania dissimulada:

Hoje tende-se a afirmar que o agnosticismo e o relativismo céptico constituem a filosofia e o comportamento fundamental mais idóneos às formas políticas democráticas, e que todos quantos estão convencidos de conhecer a verdade e firmemente aderem a ela não são dignos de confiança do ponto de vista democrático, porque não aceitam que a verdade seja determinada pela maioria ou seja variável segundo os diversos equilíbrios políticos. A este propósito, é necessário notar que, se não existe nenhuma verdade última que guie e oriente a acção política, então as ideias e as convicções podem ser facilmente instrumentalizadas para fins de poder. Uma democracia sem valores converte-se facilmente num totalitarismo aberto ou dissimulado, como a história demonstra.[2]

Compreende-se, assim, que a Democracia é defendida pela Igreja na medida em que é o sistema que melhor promove, nas circunstâncias atuais, a dignidade humana. No entanto, verifica-se que a Democracia no mundo ocidental se tem afastado da sua definição clássica e, por isso, apresenta graves lacunas ao ponto de, com S. João Paulo II, vermos traços de um “totalitarismo dissimulado” que importa combater.

Como? Com as armas próprias da própria Democracia, como já alguns cristãos têm começado a fazer publicamente: participando mais activamente na vida política; estudando com profundidade as matérias políticas fundamentais para conseguirmos explicar de forma convincente o que é o Bem e o mal em cada momento; e, principalmente, com a nossa oração e a luta diária para sermos Santos e, assim, darmos melhor testemunho da nossa Fé na Sociedade.

[1] CDF, NOTA DOUTRINAL sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política, n. 3, disponível aqui.

[2] João Paulo II, Enc. CENTESIMUS ANNUS, n. 46, disponível aqui.

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