Não toleramos, amamos (parte 2)

No último artigo iniciámos a análise de alguns assuntos da actualidade que, parecendo independentes entre si, estão na realidade ligados por serem sintomas da enorme falta de profundidade com que a sociedade contemporânea trata a realidade em que se insere. Analisámos, em particular, a moda das bandeiras arco-íris no mês de Junho e compreendemos quão perniciosas podem ser, por serem símbolos, não de tolerância e de respeito, mas de uma ideologia totalitária.

Reveladora de alguma falta de profundidade foi, também, a polémica que se instalou quando veio a público que os Bispos dos EUA estariam a preparar um documento sobre a Eucaristia e a forma apropriada de a receber. Imediatamente, surgiram vozes que acusavam os bispos de estarem a “politizar” o Sacramento e de quererem, com esse documento, atacar alguns políticos norte-americanos, como o Presidente dos Estados Unidos – que se afirma católico, embora apoie e promova políticas que violam princípios fundamentais da lei natural, como o aborto gratuito e o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Políticas sobre as quais, de resto, Biden tem vindo a extremar a sua posição, face ao que afirmava antes de ser Presidente.

A carta dos Bispos, a ser publicada, não teria nada de polémico por três motivos fundamentais:

  1. Porque, imediatamente, os Bispos dos EUA esclareceram que a carta não seria dirigida a nenhum católico ou político concreto, mas antes a todos os Católicos;
  2. Porque, já em 2004, a mesma conferência episcopal publicou um documento que se debruça sobre o assunto e este novo documento não traria nenhuma novidade face ao que já foi afirmado então, nomeadamente:

 

Foi levantada a questão sobre se seria necessário negar a Santa Comunhão a alguns políticos católicos que apoiam o aborto a pedido. Dado o leque alargado de circunstâncias a ter em conta para formular um julgamento prudencial sobre uma matéria com este grau de seriedade, reconhecemos que tais decisões cabem individualmente a cada bispo, de acordo com os princípios estabelecidos canónica e pastoralmente. Os Bispos podem legitimamente ter entendimentos diferentes sobre qual a linha de acção pastoral mais prudente. De qualquer modo, todos partilhamos o compromisso inequívoco de proteger a vida e a dignidade humana e de pregar o Evangelho em tempos difíceis.[1]

 

3. Finalmente, no caso remoto em que os bispos tivessem optado por conjuntamente ajuizar sobre o impedimento em receber a comunhão de algum político, não só tal decisão não seria inédita, como está mesmo prevista em situações muito restritas, como veremos de seguida.

Sendo os pontos i. e ii. triviais, talvez valha a pena aprofundar um pouco mais o ponto iii.

Em primeiro lugar, importa precisar que, juridicamente, quem tem autoridade numa diocese é o bispo, naturalmente em comunhão com o sumo pontífice.[2] As conferências episcopais são estruturas administrativas que, tendo sido impulsionadas e promovidas pelo Concílio Vaticano II, servem para que os bispos de um dado território (normalmente um país) se possam coordenar, fortalecendo a natureza colegial da Ordem dos Bispos, como explicou S. João Paulo II no motu proprio sobre a natureza teológica e jurídica das conferências dos bispos:

A autoridade da Conferência Episcopal e o seu campo de acção estão em estrita ligação com a autoridade e acção do Bispo diocesano e dos Prelados a ele equiparados. Os Bispos «presidem em lugar de Deus ao rebanho, de que são pastores, como mestres da doutrina, sacerdotes do culto sagrado, ministros do governo. (…) Por instituição divina, sucedem aos Apóstolos como pastores da Igreja», e «governam as Igrejas particulares que lhes foram confiadas como vigários e legados de Cristo, por meio de conselhos, persuasões, exemplos, mas também com autoridade e poder sagrado (…). Este poder que exercem pessoalmente em nome de Cristo, é próprio, ordinário e imediato»

Deste modo, é expectável que seja cada bispo a usar da sua autoridade própria na sua diocese para definir matérias desta importância e especificidade, sendo certo, porém, que as Conferências Episcopais têm verdadeiro poder doutrinal em algumas circunstâncias muito particulares, definidas no motu proprio já citado.[3]

Referi, também, no ponto iii. que “a decisão não seria inédita”. E digo-o, não só porque são abundantes os exemplos em que bispos e até mesmo Papas, ao longo da história, deram penas canónicas a autoridades públicas por questões políticas, mas também porque, mesmo nos tempos mais recentes esta prática continuou a ter lugar. Um exemplo recente nos EUA, recorda Ryan T. Anderson num artigo no WSJ, foi quando, em 1962, o arcebispo Joseph Rumel de Nova Orleães excomungou três líderes políticos locais, por se terem oposto à sua decisão de integrar alunos negros nas escolas católicas, o que, à época, não era de todo consensual e que valeu o fim do financiamento público a essas escolas.

Quanta coragem foi necessária a este bispo e quantos riscos correu na altura. No entanto, hoje é inegável que tomou a decisão certa… mesmo para aqueles que hoje acusam os bispos de “politização do sacramento”. Aliás, estes acusadores, curiosamente, gostam de justificar a sua posição dizendo que a Igreja ensina que se deve apoiar os mais pobres e desfavorecidos, bem como as minorias étnicas. O que é verdade. Mas ambos os ensinamentos não são mutuamente exclusivos. Pelo contrário, até se reforçam se olharmos para o bebé que ainda não nasceu como o mais pobre e indefeso de todos os humanos.[4]

Concretamente no que diz respeito à possibilidade de negar a comunhão a certos políticos, a Igreja define que a regra geral é não negar a comunhão a ninguém, no entanto, há situações em que essa possibilidade está prevista, tal como afirmado no ponto iii.

Como sabemos, o principal motivo que impede alguém de comungar é o facto de não se encontrar em estado de graça, não porque a Igreja faça acepção de pessoas, mas tão-só porque essa pessoa escolheu não estar em comunhão com a Igreja. Este princípio, além do mais elementar bom senso (ninguém se senta a comer na casa de um amigo sem pedir desculpa por alguma ofensa grave que lhe tenha dirigido), é autêntica doutrina apostólica. Não há qualquer nuance ou discussão possível a este respeito, como se pode ler no Catecismo (n.º 1385):

Para responder a este convite, devemos preparar-nos para este momento tão grande e santo. São Paulo exorta a um exame de consciência: «Quem comer o pão ou beber do cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, cada qual a si mesmo e então coma desse pão e beba deste cálice; pois quem come e bebe, sem discernir o corpo do Senhor, come e bebe a própria condenação» (1Cor 11, 27-29). Aquele que tiver consciência dum pecado grave deve receber o sacramento da Reconciliação antes de se aproximar da Comunhão.

Adicionalmente, o Código de Direito Canónico, especifica (cân. 916):

Quem estiver consciente de pecado grave não celebre Missa nem comungue o Corpo do Senhor, sem fazer previamente a confissão sacramental, a não ser que exista uma razão grave e não tenha oportunidade de se confessar; neste caso, porém, lembre-se de que tem obrigação de fazer um acto de Contrição perfeita, que inclui o propósito de se confessar quanto antes.

Se isto é verdade, também é verdade que, em última análise, por norma, só o próprio e Deus sabem quem se encontra em estado de graça, isto é, com todos os pecados mortais perdoados. É com base nesta noção e para evitar o escândalo que a Igreja tem como regra geral não negar a comunhão a nenhum baptizado.

Contudo, também é possível que aconteça exactamente o contrário: em alguns casos não negar a comunhão a um indivíduo pode provocar escândalo e confusão ainda maiores na comunidade. Estes casos muito concretos estão previstos no cânon 915 do Código de Direito Canónico:

Não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto.

Esta é uma lei universal da Igreja. Independentemente de qualquer documento que os bispos dos EUA possam publicar, esta lei já tem de ser observada. Por outras palavras: em situações muito particulares, não só é legítimo, como é obrigatório negar a comunhão.

Resta agora compreender melhor que situações particulares são essas. O cânon, como vimos, refere duas situações:

  • Situações em que alguém esteja excomungado ou interdito, desde que a pena já tenha sido aplicada ou declarada. Quer isto dizer que não basta que alguém esteja excomungado, é necessário que essa excomunhão tenha sido declarada. Este detalhe é relevante porque há certas matérias, como a realização de um aborto, que implicam excomunhão latae sententiae (automática), pelo que a pessoa pode estar excomungada mas, ainda assim, não estar previsto que lhe seja negada a comunhão;
  • O direito prevê ainda que alguns indivíduos, mesmo não estando formalmente excomungados, possam ser impedidos de comungar. É o caso dos que “obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto”. Vejamos em maior detalhe o que é que isto quer dizer:
    1. Não basta pecar gravemente para ser aplicada esta pena (embora, como já se viu, quem o faz não se deve aproximar da comunhão);
    2. Além de grave, é necessário que esse pecado seja manifesto, o que na linguagem do Direito Canónico, significa que o pecado deve ser público, ou seja, conhecido por uma porção significativa da comunidade[5];
    3. Além de grave e manifesto, o pecador tem de obstinadamente perseverar nesse pecado grave e público. Isto é, a pessoa tem de ser alertada pela autoridade eclesiástica para a gravidade do seu pecado e para as consequências que pode ter, antes de lhe ser negada a comunhão.

Fica assim claro que só pode ser polémico negar a comunhão para quem tenha um conhecimento incipiente da história, da doutrina ou, pelo menos, da disciplina da Igreja. A Igreja, “mãe amorosa”, não é meramente “tolerante” – que má mãe é aquela que se limita a tolerar o seu filho! A Igreja ama os seus filhos e o amor verdadeiro, implica muitas vezes a correcção e o castigo, não por si próprios, mas porque só vivendo na fidelidade absoluta à Verdade se descobre a felicidade para a qual fomos criados.

[1] Conferência Episcopal dos EUA, Catholics in Political Life (2004) [Tradução livre, texto completo disponível no link disponibilizado]

[2] Cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. Lumen gentium, 20 e 27; João Paulo II, MOTU PROPRIO APOSTOLOS SUOS (1998); C.I.C., cân. 381-§ 1. [Disponíveis no site do Vaticano]

[3] Em particular, vd. o ponto 22 e o art.º 1 das normas complementares.

[4] Trata-se da justificação dada por um conjunto de 60 congressistas do Partido Democrata dos EUA numa “declaração de princípios” elaborada quando foram conhecidas as intenções dos bispos do EUA de escrever um documento sobre a Eucaristia. Estes políticos, embora se definam como católicos, tentam justificar nesse documento o facto de promoverem políticas incompatíveis com a religião que dizem professar como o aborto, “casamento” entre pessoas do mesmo sexo, divórcio simplificado, etc. A este respeito vale a pena ler a resposta caridosa de um Arcebispo às principais afirmações desses congressistas, disponível aqui.

[5] Para quem queira aprofundar, recomenda-se a Tertia Pars da Summa Theologiae (Q. 80, art.º 6), onde S. Tomás de Aquino analisa se deve ser negada a comunhão aos pecadores. No artigo, o santo explica precisamente que deve ser feita uma distinção entre pecadores “secretos” (sic) e “notórios” (sic), sendo que aos primeiros não deve ser negada a comunhão, mas aos segundos, sim.

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