COP26, Laudato Si’ e os histerismos climáticos

O Orçamento do Estado para 2022 chumbou e o Presidente da República decidiu dissolver o Parlamento. Mesmo nessa condição, o Parlamento não quis perder a oportunidade de aprovar – novamente – a lei da morte a pedido, de forma absolutamente autocrática. Não é concebível um Parlamento sem legitimidade política para aprovar uma matéria desta gravidade, fazê-lo, ainda por cima ao arrepio das recomendações de uma série de especialistas – que, para agravar, nem foram chamados a analisar a nova lei, tal era a fúria legislativa.

Pouco antes, o Parlamento havia aprovado a polémica inseminação post mortem, após pequenas alterações motivadas pelo veto inicial do Presidente da República (que, entretanto, tristemente, já promulgou a nova versão da lei).

Para compor este embrulho de violações da dignidade do ser humano, soube-se também recentemente que o Governo – também esse moribundo e em fim de mandato – continua no seu processo de bullying contra os jovens Tiago e Rafael Mesquita Guimarães de Famalicão, numa obsessão com contornos totalitários do Secretário de Estado. A este respeito, sugiro a leitura deste artigo recente do Dr. José Ribeiro e Castro.

Todos estes assuntos já tinham sido abordados em artigos anteriores e, por isso, não há necessidade, neste momento, de os analisar em maior detalhe. Como o leitor já terá apurado pelo título, falaremos de outro assunto na ordem do dia, mas que, no meio de tanto atropelo político à dignidade humana em todas as suas fases de desenvolvimento, acabou por ficar de alguma forma esquecido.

Uma nova religião climática?

Decorre por estes dias a COP 26. Organizada pela ONU, trata-se da 26ª edição do principal encontro de líderes políticos para debater questões climáticas que, este ano, tem lugar em Glasgow, na Escócia.

Num momento em que a preocupação com as alterações climáticas é generalizada, esta conferência foi antecedida por uma enorme expectativa por vários motivos: pelo regresso dos EUA à mesa de negociação; por não ter existido COP em 2020 e pela escalada de uma retórica algo alarmista[1]. O próprio Vaticano manifestou o seu apoio à conferência e chegou a ser colocada a possibilidade (não concretizada) do próprio Papa ir assistir. No entanto, com o avançar dos trabalhos têm-se confirmado os receios dos mais cépticos… Parece que não será à 26ª tentativa que se vai chegar a uma solução para as alterações climáticas (que já foram “aquecimento global” e que agora começam a ser chamadas de “crise climática”), uma vez mais, tudo espremido, pode não passar muito de pura propaganda política.

Esta coluna dedica-se a comentar assuntos relacionados com a Igreja e, estritamente falando, as alterações climáticas são um assunto essencialmente científico que, tendo a sua importância, foge às competências da Igreja que se dedica sobretudo à salvação das almas[2], o que já não é tarefa pequena. No entanto, a popularidade, o alcance e os riscos associados às medidas levadas a cabo para mitigar as alterações climáticas, já levaram o Papa a escrever uma extensa reflexão – a encíclica Laudato Si’ – que poderá valer a pena revisitar num momento em que somos inundados de (des)informação e alarmismo climático que o leitor menos atento poderá tomar como “dogmas”, quando não o são. O problema climático não pode ser resolvido transformando o clima numa ideologia com a consequente polarização de posições que daí tem advindo, mas analisando os dados concretos que existem, sem vieses nem preconceitos. Esta é de resto, uma das principais mensagens da Laudato Si’:

«(…) [A] propósito da situação e das possíveis soluções, que se desenvolveram diferentes perspectivas e linhas de pensamento. Num dos extremos, alguns defendem a todo o custo o mito do progresso, afirmando que os problemas ecológicos resolver-se-ão simplesmente com novas aplicações técnicas, sem considerações éticas nem mudanças de fundo. No extremo oposto, outros pensam que o ser humano, com qualquer uma das suas intervenções, só pode ameaçar e comprometer o ecossistema mundial, pelo que convém reduzir a sua presença no planeta e impedir-lhe todo o tipo de intervenção.»[3]

Também o Padre Haffner, professor de teologia sistemática na Universidade Gregoriana em Roma expressou esta preocupação, referindo que, para muitos, a ciência climática se tem transformado numa “religião climática” que é, basicamente cosmocêntrica “em que o cosmos é colocado no centro e o ser humano é tratado como um incómodo, que deve ser posto de lado”, acrescentando que “aborto, eutanásia e o controlo populacional são parte desta agenda” que “coloca a pessoa em segundo ou terceiro lugar (…) ao mesmo nível dos animais”.

Estou convencido que a COP 26 e iniciativas semelhantes dificilmente poderão ter algum resultado prático por uma série de razões, que se podem organizar em duas ordens distintas: razões de ordem prática e razões de ordem moral.

Problemas de ordem prática

Do ponto de vista prático, o erro central parece-me ser que todos estes encontros partem do princípio de que os líderes mundiais têm a capacidade de alterar o rumo das alterações climáticas. Mesmo deixando de parte a consideração de que nem os cientistas são consensuais quanto ao peso que os humanos têm nas alterações climáticas e quanto às possíveis soluções, parece evidente que, a menos que se instalem Estados policiais ou totalitários, os governantes das nações não têm a capacidade (e, provavelmente, nem os incentivos) de alterar factores como as emissões de gases com efeito de estufa (GEE). As emissões são o resultado de milhões de interacções diárias dos seres humanos e das empresas, no exercício da sua liberdade, que muito dificilmente são influenciados por políticas ou metas climáticas.

Mesmo num cenário hipotético em que os governos das nações pudessem influenciar de forma relevante o volume de emissões através das suas políticas, alguns países isolados, ou mesmo um continente isolado, pouco pode fazer para combater um fenómeno que é global. O que se verifica é um esforço significativo da Europa para cumprir com objectivos e metas, muitas vezes com consequências graves para o bem estar dos seus cidadãos, mas, uma vez que os países com maior peso nas emissões globais (EUA, China e India) não se têm comprometido da mesma forma, o impacto do esforço que a Europa faz é marginal e a concentração de GEE na atmosfera continua a aumentar, até porque, uma vez na atmosfera, muito dificilmente de lá saem. Também as emissões de CO2 têm aumentado paulatinamente, não obstante todo o esforço dos governos europeus.

Outra grave questão de ordem prática e que também ajuda a compreender o insucesso destas iniciativas climáticas tem que ver com o facto de não termos, ainda, tecnologias capazes de solucionar estes problemas. À data de hoje, as soluções propostas são as fontes de energia renováveis, principalmente, solar e eólica, e as soluções de mobilidade elétrica. Ora, nem num nem outro são verdadeiras soluções, pelo menos à para já. Em primeiro lugar, (e colocando de parte outros entraves políticos e financeiros) porque são altamente dependentes de metais raros, como o lítio, o cobalto, o neodímio ou o gálio, cuja extração tem um enorme custo ambiental e social, particularmente em países pobres. Ou seja, para que em Portugal se possa utilizar um veículo elétrico de 50 ou 60 mil euros, na China ou no Chile há cidades pobres que estão a ser destruídas. A este respeito, recomendo este importante documentário disponibilizado gratuitamente pela RTP.

No que diz respeito às energias renováveis, como a eólica, a solar ou a hídrica, há ainda o grave problema da intermitência. Como são geradas por factores que não controlamos (sol, vento, caudal), muitas vezes são produzidas quando são menos necessárias (noite, no caso das eólicas e a meio do dia, no caso da solar), há a necessidade de ter alguma capacidade instalada de centrais a gás natural ou a carvão para suprir a necessidade de energia nas horas de maior consumo (início de dia e final da tarde). Este artigo pode ser útil para quem queira aprofundar esta problemática.

Compreende-se assim que, do ponto de vista prático, não há soluções óbvias disponíveis e que os Governos pouco ou nada podem fazer com impacto concreto no clima. Especialmente em países como Portugal que têm uma agenda climática muito agressiva, com mais impacto na redução da qualidade de vida das pessoas do que propriamente no clima. Tudo em prol de boas estatísticas para apresentar.[4]

Ainda que seja mais fácil criticar os Governos e faltar às aulas para fazer manifestações pelo clima, a verdade é muito mais complexa. Se alguma coisa podemos pedir aos governos, deve ser o investimento em investigação e no desenvolvimento de algumas tecnologias promissoras que começam a aparecer. Também, como lembra o Papa Francisco, a responsabilidade individual terá sempre um papel central na transição climática: consumir os produtos da época, preferir produtos locais, em vez dos produtos importados com cadeias de abastecimento maiores, não gastar energia desnecessária, etc.:

«(…) Não podemos pensar que os programas políticos ou a força da lei sejam suficientes para evitar os comportamentos que afectam o meio ambiente, porque, quando é a cultura que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objectiva ou quaisquer princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como imposições arbitrárias e obstáculos a evitar.»[5]

Problemas de ordem moral

Menos discutidos ainda que os problemas de ordem prática, mas mais graves, são os problemas de ordem moral ou ética que comprometem o modelo de transição climática em que estas cimeiras estão assentes. A encíclica Laudato Si’ aborda-os de forma extensiva e é muito importante recordá-los e difundi-los. Do ponto de vista católico, parece-me, são estes os que mais nos devem preocupar.

Um primeiro problema prende-se com a tendência que algum activismo climático tem para a divinização da terra ou para igualar o homem às restantes espécies animais:

«[O respeito pelas outras espécies] não significa igualar todos os seres vivos e tirar ao ser humano aquele seu valor peculiar que, simultaneamente, implica uma tremenda responsabilidade. Também não requer uma divinização da terra, que nos privaria da nossa vocação de colaborar com ela e proteger a sua fragilidade. Estas concepções acabariam por criar novos desequilíbrios, na tentativa de fugir da realidade que nos interpela. Às vezes nota-se a obsessão de negar qualquer preeminência à pessoa humana, conduzindo-se uma luta em prol das outras espécies que não se vê na hora de defender igual dignidade entre os seres humanos. Devemos, certamente, ter a preocupação de que os outros seres vivos não sejam tratados de forma irresponsável, mas deveriam indignar-nos sobretudo as enormes desigualdades que existem entre nós (…)»[6]

O Santo Padre acrescenta ainda que:

«(…) Não há ecologia sem uma adequada antropologia. Quando a pessoa humana é considerada apenas mais um ser entre outros, que provém de jogos do acaso ou dum determinismo físico, «corre o risco de atenuar-se, nas consciências, a noção da responsabilidade». Um antropocentrismo desordenado não deve necessariamente ser substituído por um «biocentrismo», porque isto implicaria introduzir um novo desequilíbrio que não só não resolverá os problemas existentes, mas acrescentará outros. Não se pode exigir do ser humano um compromisso para com o mundo, se ao mesmo tempo não se reconhecem e valorizam as suas peculiares capacidades de conhecimento, vontade, liberdade e responsabilidade.»[7]

Esta esquizofrenia climática que preocupa o Papa tem tido efeitos concretos muito preocupantes que só têm vindo a aumentar à medida que aumenta o volume e a intensidade dos histerismos climáticos. Uma das suas manifestações mais graves é o oportunismo de certas instituições para fazer avançar agendas radicais de controlo da população, de promoção do aborto e de pesquisa com embriões. Algo que o Sumo Pontífice não deixou de criticar veementemente, tanto na encíclica sobre o clima, como numa série de ocasiões subsequentes. A Laudato Si’ é muito clara:

«Uma vez que tudo está relacionado, também não é compatível a defesa da natureza com a justificação do aborto. Não parece viável um percurso educativo para acolher os seres frágeis que nos rodeiam e que, às vezes, são molestos e inoportunos, quando não se dá protecção a um embrião humano ainda que a sua chegada seja causa de incómodos e dificuldades: «Se se perde a sensibilidade pessoal e social ao acolhimento duma nova vida, definham também outras formas de acolhimento úteis à vida social»»[8]

«(…) é preocupante constatar que alguns movimentos ecologistas defendem a integridade do meio ambiente e, com razão, reclamam a imposição de determinados limites à pesquisa científica, mas não aplicam estes mesmos princípios à vida humana. Muitas vezes justifica-se que se ultrapassem todos os limites, quando se faz experiências com embriões humanos vivos. Esquece-se que o valor inalienável do ser humano é independente do seu grau de desenvolvimento. Aliás, quando a técnica ignora os grandes princípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática.»[9]

A natureza humana também tem sido atacada por agendas ocultas de instituições que procuram utilizar as legítimas preocupações ambientais para fazer avançar a agenda da ideologia de género, utilizando indevidamente fundos disponibilizados para a transição climática. Um exemplo recente é a USAID, uma agência do Governo dos EUA, que anunciou que utilizará fundos climáticos para a promoção desta ideologia. Uma vez mais, algo que já tinha sido previsto pelo Papa:

«A ecologia humana implica também algo de muito profundo que é indispensável para se poder criar um ambiente mais dignificante: a relação necessária da vida do ser humano com a lei moral inscrita na sua própria natureza. Bento XVI dizia que existe uma «ecologia do homem», porque «também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece». Nesta linha, é preciso reconhecer que o nosso corpo nos põe em relação directa com o meio ambiente e com os outros seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo contrário, uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial para uma verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um comportamento que pretenda «cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela»»[10]

Outra organização que se tem aproveitado das preocupações legítimas com o clima para fins ilegítimos é o WEF (Fórum Económico Mundial), um dos principais patrocinadores da COP 26, que, ao mesmo tempo, tem promovido iniciativas obscuras como o “great reset”, visto como um plano para criar uma sociedade tecnocrática centralizada e descristianizada. Será um assunto que poderemos aprofundar em artigo futuro.

Oremos para que a Santa Sé seja capaz de utilizar a sua influência nestes centros de decisão, de modo a despertar nos líderes mundiais a razoabilidade e sensatez necessárias para reconhecer que nenhum grande plano pode ser levado a cabo no planeta se colocar a dignidade da pessoa humana em segundo plano. Já nos chegaram as horríveis experiências do séc. XX para o demonstrar. Que o Senhor os inspire e a cada um de nós para que saibamos cuidar deste maravilhoso dom que é o nosso planeta.

Bernardo Serrão Brochado

[1] Tomando como exemplo dois dos principais líderes mundiais: Joe Biden afirmou que “não temos mais tempo” e António Guterres tem insistido nesta narrativa, tendo feito um discurso contundente no início dos trabalhos, em que afirmou que estamos a “cavar as nossas sepulturas” enquanto estivermos dependentes dos combustíveis fósseis. Estes comentários, no entanto, apesar do tom alarmista, são marcados por alguma incoerência quanto às acções concretas dos líderes, como este texto explica bem.

[2] Cf. e.g. Carta enc. Laudato Si’, n.º 60

[3] Carta enc. Laudato Si’, n.º 188

[4] Note-se que Portugal é dos países com maior taxa de pobreza energética na europa (c. 20%) e ao mesmo tempo é dos países onde a electricidade é mais cara, mesmo face a países muito mais ricos do que nós. Este problema com impacto particularmente grave nos mais pobres, acentuou-se devido à crise energética que hoje vivemos, provocada por um aumento galopante dos preços da energia (combustíveis e electricidade) que, em parte significativa, são explicados por um peso desproporcional das medidas de transição climática, como os impostos elevados sobre combustíveis fósseis e o custo crescente das licenças de CO2.

[5] Carta enc. Laudato Si’, n.º 123

[6] Carta enc. Laudato Si’, n.º 90

[7] Ibid., 118

[8] Ibid., 120

[9] Ibid., 136

[10] Ibid., 155

 

Fotografia: Markus Spiske via Unsplash
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