Eutanásia – Reflexão filosófica
Alexandre Santos
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Camus dizia que a única questão verdadeiramente filosófica é o suicídio. Valerá a pena viver? Que sentido tem a vida? A eutanásia e o suicídio assistido obrigam-nos a colocar estas questões. As repostas da cultura vigente são variadas mas assentam elas próprias em pressupostos filosóficos mais ou menos explícitos.
Estes pressupostos tornam-se evidentes na própria forma como a questão é colocada e de certa forma invocam automaticamente um certo tipo de resposta. Nas palavras de David Hume num ensaio sobre o suicídio: “porque deverei eu prolongar uma existência miserável por uma qualquer vantagem frívola que o público possa receber de mim?”. “Que utilidade tem uma vida que tem de ser vivida assim?”. Na ausência de possibilidade duma vida com utilidade aparente, seja pela impossibilidade de construção dum projeto pessoal com sucesso e relevância para outros ou simplesmente pela ausência de prazeres tidos como essenciais, a vida é vista como sem “sentido” e a obrigação de a viver como insuportável tirania.
A palavra chave nesta questão é utilidade. Não é essencialmente uma questão sobre o sentido com toda sua densidade filosófica mas outrossim da sua utilidade. O dogma do utilitarismo é assumido na forma como se constrói a questão e confunde-se utilidade com sentido. A vida é despojada do seu carácter transcendente e misterioso e reduzida às circunstâncias em que decorre. O fazer antecede o ser na hierarquia de valores, é-se o que se faz e é-se tanto mais quanto mais e “melhor” se faz. Na impossibilidade do “fazer” a vida perde o único sentido possível. O assassínio do outro torna-se aceitável perante o bem maior que é libertar esse outro do fardo insuportável que é a vida. Ser a favor da eutanásia supõe um assentimento tácito à premissa de que há vidas que não merecem ser vividas, que a dignidade humana não é um valor absoluto.
O problema do utilitarismo como princípio orientador de decisões éticas é a evidência de que ninguém sabe todos os fins. O entendimento humano é essencialmente limitado. Não possuímos a totalidade do conhecimento sobre a vida e o seu sentido e, por isso é-nos epistemologicamente impossível julgar quando é que não estão reunidas as condições para que ela mereça ser vivida. Esta limitação no entendimento, mais do que uma privação acidental, define-nos como Homens e é um aspeto a partir do qual nos temos de perceber a nós mesmos. Somos seres contingentes, não albergamos em nós o princípio nem o fim. Achámo-nos neste mundo sem ter pedido, e somos neste mundo como nos foi dado ser no tempo que temos ao nosso dispor. Não escolhemos ter fome e precisar de nutrição como não escolhemos ter sede de água ou mesmo de Beleza, Verdade e Bem. Podemos escolher viver vidas mais ou menos autênticas mas não podemos escolher o que é uma vida autêntica. O sonho nietzschiano do Homem como criador de valores não passa dum sonho, ou devo dizer antes pesadelo, como comprovam as tentativas totalitárias do seculo XX ou o ilustrativo exemplo das angústias do jovem Raskolnikov em Crime e Castigo de Dostoievsky.
Esta forma de ser no mundo deve abrir o Homem à dimensão do mistério. O mistério, é importante percebê-lo, não é outra palavra para a ignorância mas uma intimação do que na vida está, pela sua própria natureza, para lá dos limites da nossa compreensão. Etimologicamente, a palavra mistério evoca precisamente a atitude a ter perante esta dimensão da realidade, fechar os olhos e a boca para não “ver” nem “falar” sobre o que é essencialmente invisível e inefável.
As questões do fim da vida não podem ser abordadas sem referencia a este mistério que é, não só a vida humana em geral, mas concretamente cada Homem em particular e exigem por isso cautela. A única atitude razoável perante este mistério de qual somos beneficiários é a gratidão. Dizia Chesterton que a gratidão é a forma mais alta de pensamento.
A perceção deste mistério levou ao surgimento do conceito de dignidade do ser humano como valor absoluto. No entanto, a dignidade de cada ser humano é, simultaneamente absoluta e relativa. Absoluta na medida em que o seu valor é condição de possibilidade de todos os outros valores. Relativa porque o desenvolvimento pessoal de cada individuo requer o reconhecimento desta mesma dignidade por outros. Na mitologia romana esta realidade é ilustrada pelo processo de criação do Homem em que Aerea Cura, depois de formar o homem a partir da terra(humus), pede a Júpiter que lhe dê o espirito. Quando se tem que decidir que nome se dará a esta criação Saturno decide que uma vez que foi Jupiter quem lhe deu o espírito, terá direito a ele depois da morte. O corpo voltará à terra porque desta veio. Já em vida será o Cuidado (Cura) a zelar por ela. Por outras palavras, em vida é o cuidado que nos forma e define, numa palavra, que nos humaniza. É em relação com os outros numa relação de confiança que se forma e desvela o Homem. A eutanásia é a antítese deste cuidado, a sua recusa definitiva e por isso profundamente anti-humana e irracional.
Qual será então a melhor forma de colocar a questão da eutanásia? Como abordar estas questões do final da vida sem cair numa leitura individualista ou utilitarista? A dificuldade na resposta a estas questões é evidente. Gostaria de recordar a este propósito Emmanuel Levinas, filósofo francês, judeu, sobrevivente do holocausto apenas porque o estatuto de prisioneiro de guerra na Alemanha nazi o impediu de ir para um campo de concentração. Para Levinas a presença do outro, do rosto do outro, é um imperativo ético. Exige de mim um cuidado e uma atenção que são únicos na nossa relação com o mundo. A antítese deste cuidado é, para Levinas, a violência. O esforço da sua vida foi criar um sistema filosófico que impedisse barbáries como a nazi que ele terrivelmente experimentou. Barbáries que se tendem a repetir historicamente quando a humanidade se esquece da importância não só da humanidade em geral mas especialmente de cada ser humano e do milagre que cada um é.