Só a verdade nos faz livres

por Bernardo Brochado

Ainda há bem pouco tempo, uma campanha de Natal da MEO deu que falar, já que, marcada pela ambiguidade típica do nosso tempo, nos apresenta boas e más lições.

Ao som de A Million Dreams, da cantora “P!nk” (interpretado por Carolina Deslandes), e sob o mote “Humaniza-te”, a campanha girava em torno de cinco histórias verídicas, cada uma representando uma causa social. Trata-se da história da Viviane, uma refugiada da Costa do Marfim; da Pilar, que tem trissomia 21; da Ester, uma adolescente mexicana adoptada por uma família portuguesa; do Francisco, que na reforma começou a praticar desporto; e da “Benedita”, um jovem rapaz que se submeteu a uma operação de mudança de sexo.

A campanha teve a virtude de dar um contributo para a inclusão de pessoas com trissomia 21, uma população que, em particular nos países mais desenvolvidos, foi marcada como indesejável e há até países que conseguiram eliminar todas as pessoas com esta condição, num verdadeiro holocausto anti-trissómico. Em contraciclo com essa triste tendência, a campanha dá um exemplo concreto de como estas pessoas podem ter um grau elevado de autonomia e de integração, vivendo vidas felizes e normais.

A campanha é boa, ainda, porque aborda os testemunhos da Viviane, da Ester ou do Francisco, que são casos de superação de dificuldades que nos transmitem aquela ideia tão importante de que os obstáculos, os sofrimentos e as dificuldades não definem quem nós somos. De que, tendo Esperança, Fé e Fortaleza, conseguimos ultrapassar os desafios mais difíceis e, mais importante ainda, dar-lhes significado. Esta mensagem é particularmente interessante no Natal, já que é no Natal que nasce o Redentor, Aquele que, resolveu o maior de todos os nossos problemas.

Infelizmente, a campanha ficou beliscada pelo testemunho de “Benedita”.

Note-se que todas as outras histórias têm em comum o confronto com a verdade e daí partem para uma solução. Porém, a história de “Benedita” caracteriza-se por uma inversão deste padrão. Nega-se a verdade biológica, imutável, de que se trata de uma pessoa do sexo masculino, disfarçando-a através de cirurgias que não corrigem o problema, antes o escondem. A MEO, movida pelos vanguardismos da moda presta um mau serviço a todos os que se debatem com as dificuldades sentidas por pessoas como “Benedita”, vendendo a falsa ilusão de que é disfarçando os problemas que eles se resolvem, quando sabemos que esse caminho não só não resolve o problema como até o pode agravar, ao acrescentar uma série de mutilações corporais, acompanhadas por cocktails hormonais potentíssimos com resultados em larga medida irreversíveis. Um jovem rapaz fisicamente saudável, mas com um transtorno de identidade sexual, deve procurar resolver o seu transtorno e não destruir o seu corpo saudável que é um magnifico dom.

Como referiu um comentador norte-americano acerca de uma situação semelhante, temos apenas duas hipóteses: ou preservamos o corpo que Deus nos deu, ou o destruímos. Por natureza, não temos a capacidade de criar um novo corpo. O resultado de uma operação de mudança de sexo não é a mudança de sexo, mas a manutenção do mesmo sexo com uma aparência estranha, artificial, que não reflecte a verdade profunda daquele ser que é alma, mas que é também corpo[1]. Isto porque a verdade do ser expressa-se pela alma, mas também pelo corpo que recebemos. Somos corpo e somos alma, não uma alma com um corpo, ao contrário do que certas modas que fazem lembrar os antigos maniqueísmos nos querem impor. O corpo é sagrado e deve ser estimado e cuidado, como templo do Espírito Santo.

Poderíamos perguntar: “ainda assim, não devemos mostrar compaixão pela pessoa que lida com uma disforia desta natureza? Não devemos ser solidários com o enorme sofrimento que visita esta pessoa e a sua família?” E a resposta é obviamente sim. Claro que devemos. E deve ficar muito claro que o condenável não é a pessoa e o seu sofrimento, mas a atitude de mutilação do seu corpo, que é atenuada, certamente, pelo contexto em que vivemos onde tem grande força a ideia tão destruidora e mentirosa de que temos o poder de escolher mudar a nossa natureza, de que não há limites para a autonomia individual. A verdadeira compaixão implica, sempre, a verdade. Mentir, repetindo o mantra “podes ser o que quiseres”, é, na realidade, o oposto de compaixão. É o superlativo da indiferença individualista de quem na realidade não quer o bem do outro, deixando-o abandonado aos seus caprichos, às suas fragilidades e aos seus erros, na medida em que isso não interfira na sua vida. Por esta razão, não mostramos compaixão quando tratamos pessoas com outras disforias fingindo que o seu comportamento é normal ou se trata de uma “identidade”. Ninguém acharia normal dizer a uma pessoa anoréxica (que se acha gorda quando na realidade é magra) que de facto é gorda porque a sua “identidade” é de gorda. Sabemos que isso a ia destruir ainda mais. De igual modo, não podemos dizer a um jovem rapaz que é uma rapariga quando sabemos que isso é mentira, porque ainda o vai destruir mais.

Não se trata de uma hipótese teórica. Os estudos mostram que entre as pessoas com disforia de género, cerca de 80% já tiveram pensamentos suicidas, como infelizmente já aconteceu com “Benedita”. Quanto à percentagem de pessoas que já tentaram o suicídio, os números rondam os 40%. São números absolutamente avassaladores e apenas comparáveis com as percentagens verificadas entre a população judaica no tempo do holocausto. Além disso, os dados são claros, estas percentagens mantêm-se dentro da mesma ordem de grandeza nos casos em que houve cirurgia de alteração de sexo e/ou tratamento hormonal. Trata-se de uma verdadeira crise de saúde pública para a qual todos somos convocados não a fingir, sob o falso argumento da compaixão, que está tudo bem, mas a condenar as falsas promessas de felicidade dos promotores destas práticas e a pressionar os nossos governantes para que seja disponibilizado acesso a cuidados de saúde mental de qualidade para todos os cidadãos. É imoral haver profissionais de saúde a enriquecer à custa da mutilação de corpos saudáveis como o de “Benedita” e de tantos outros, indiferentes ao seu sofrimento. A solução para a anorexia não é fingir que a pessoa é gorda, mas acompanhá-la e ajudá-la a ultrapassar a sua disforia; a solução para as pessoas que se mutilam não é caracterizar como um estilo de vida, mas acompanhar e ajudar; a solução para as pessoas em sofrimento profundo não é a eutanásia, mas cuidados médicos de qualidade que ajudam a desaparecer a causa do sofrimento. Da mesma forma, a solução para as pessoas com transtornos de identidade não passa por fingir que são de outro sexo, mas cuidá-las e ajudá-las a sentirem-se amadas pelo que são e não por uma ilusão do que pensam que poderiam ser. Amar dá sempre mais trabalho, mas é a única solução para as pessoas feridas. A indiferença é mais fácil, prática e politicamente favorável, mas tem sempre o mesmo destino: uma espiral de destruição e desagregação da sociedade.[2]

Como bons pastores, atentos à realidade e preocupados com os seus filhos, tanto o Papa Bento XVI, como o Papa Francisco têm sido particularmente enfáticos na denúncia das ideologias na base da ideia de que podemos mudar de sexo ou de “género”, genericamente chamadas ideologia de género.

Em 2011, o Papa Bento XVI, na sua visita ao Parlamento alemão declarava que

«A importância da ecologia é agora indiscutível. Devemos ouvir a linguagem da natureza e responder-lhe coerentemente. Mas quero insistir num ponto que – a meu ver –, hoje como ontem, é descurado: existe também uma ecologia do homem. Também o homem possui uma natureza, que deve respeitar e não pode manipular como lhe apetece. O homem não é apenas uma liberdade que se cria por si própria. O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.»

Com base nesta ideia, o Papa Francisco, na sua encíclica sobre o cuidado da casa comum, afirma com mais clareza:

«(…)é preciso reconhecer que o nosso corpo nos põe em relação directa com o meio ambiente e com os outros seres vivos. A aceitação do próprio corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum; pelo contrário, uma lógica de domínio sobre o próprio corpo transforma-se numa lógica, por vezes subtil, de domínio sobre a criação. Aprender a aceitar o próprio corpo, a cuidar dele e a respeitar os seus significados é essencial para uma verdadeira ecologia humana. Também é necessário ter apreço pelo próprio corpo na sua feminilidade ou masculinidade, para se poder reconhecer a si mesmo no encontro com o outro que é diferente. Assim, é possível aceitar com alegria o dom específico do outro ou da outra, obra de Deus criador, e enriquecer-se mutuamente. Portanto, não é salutar um comportamento que pretenda «cancelar a diferença sexual, porque já não sabe confrontar-se com ela»»

Mais tarde, em 2015, a Congregação para a Educação Católica emitiu um documento dirigido às escolas católicas em que rejeita liminarmente o ensino da ideologia de género, dado «que nos encontramos diante de uma verdadeira e própria emergência educativa» uma vez que «[e]m muitos casos são-nos apresentadas estruturas e propostas de percursos educativos que «propagam conceções da pessoa e da vida pretensamente neutras mas que, na realidade, refletem uma antropologia contrária à fé e à reta razão»». É precisamente o caso de “Benedita”. O documento explica concretamente o erro destas novas ideologias:

«Os pressupostos das teorias acima mencionadas conduzem a um dualismo antropológico: à separação entre corpo reduzido à matéria inerte e a vontade que se torna absoluta, manipulando o corpo para o seu próprio prazer. Este fisicismo e voluntarismo dão lugar ao relativismo, onde tudo é equivalente e indiferenciado, sem ordem e sem finalidade. Todas estas teorias, das moderadas às mais radicais, afirmam que o gender (género) acaba por ser mais importante que o sex (sexo). Isto determina, em primeiro lugar, uma revolução cultural e ideológica no horizonte relativista, e em segundo lugar uma revolução jurídica, porque estas instâncias promovem direitos individuais e sociais específicos»

 O documento explicita ainda que a identificação com o seu próprio sexo não resulta de uma escolha pessoal baseada em sentimentos mais ou menos arbitrários, mas de um encontro com o outro:

«A própria formação da identidade baseia-se na alteridade: no confronto imediato com o “tu” diferente de mim reconheço a essência do meu “eu”. A diferença é a condição para o conhecimento de modo genérico, e do conhecimento da própria identidade. Na família o confronto com a mãe e o pai facilita à criança o processo de elaboração da própria identidade/diferença sexual. As teorias psicanalíticas demonstram o valor tripolar da relação pais/filho, afirmando que a identidade sexual emerge plenamente somente no confronto sinérgico da diferenciação sexual.»

Este notável documento, integra ainda uma série de propostas que recomendo serem lidas na sua totalidade e que incluem o «direito da família a ser reconhecida como o espaço pedagógico primário para a formação da criança.» Que se traduz «concretamente no «gravíssimo dever» dos pais em assumirem a responsabilidade da «educação completa dos filhos de modo pessoal e social», e por isso, também lhes compete a educação para a identidade sexual e afetividade, «no quadro de uma educação para o amor, à recíproca doação»».

Outro documento que pode ser de grande utilidade é o documento da CEP sobre a ideologia de género que apresenta como solução o seguinte:

«A ideologia do género não só contrasta com a visão bíblica e cristã, mas também com a verdade da pessoa e da sua vocação. Prejudica a realização pessoal e, a médio prazo, defrauda a sociedade. Não exprime a verdade da pessoa, mas distorce-a ideologicamente. As alterações legislativas que refletem a mentalidade da ideologia do género – concretamente, a lei que, entre nós, redefiniu o casamento – não são irreversíveis. E os cidadãos e legisladores que partilhem uma visão mais consentânea com o ser e a dignidade da pessoa e da família são chamados a fazer o que está ao seu alcance para as revogar. (…) De qualquer modo, a resposta mais eficaz às afirmações e difusão da ideologia do género há de resultar de uma nova evangelização. Trata-se de anunciar o Evangelho como este é: boa nova da vida, do amor humano, do matrimónio e da família, o que corresponde às exigências mais profundas e autênticas de toda a pessoa. A esse anúncio são chamadas, em especial, as famílias cristãs, antes de mais, mediante o seu testemunho de vida.»

Esta campanha chamava-se “O Primeiro Natal”. O primeiro e único Natal é o do Senhor Jesus que veio para nos salvar, também, de nós mesmos, das nossas más inclinações e das nossas misérias. No primeiro e único Natal não O receberam, mas nem por isso deixou de nos amar até à última gota do Seu preciosíssimo sangue. Também nós, católicos, temos de ter a capacidade de amar todos os que estão longe da Fé até à última gota do nosso sangue, mas sem nunca esquecer que apenas a Verdade tem a capacidade de nos libertar a nós e aos que nos rodeiam (cf. Jo 8,32).

[1] Cf. João Paulo II, Carta às famílias, n. 19: “O filósofo que formulou o princípio “cogito, ergo sum” (penso, logo existo), acabou por imprimir à concepção moderna do homem o caráter dualista que a caracteriza. É típico do racionalismo contrapor radicalmente, no homem, o espírito ao corpo e o corpo ao espírito. O homem, pelo contrário, é pessoa na unidade do corpo e do espírito. O corpo nunca pode ser reduzido à pura matéria: é um corpo ‘espiritualizado’, assim como o espírito está tão profundamente unido ao corpo que se pode qualificar como um espírito ‘corporizado’”.

[2] A este propósito, vale a pena ter em conta a principal inconsistência destas ideologias da indiferença: por um lado, advogam que a diferença entre homem e mulher se trata de uma mera construção social e, por isso, independente do corpo. Por outro, advogam que quem se “sinta” homem ou mulher deve fazer cirurgias de “alteração de sexo”. Surge então a questão: o que significa sentir-se homem ou mulher? Esta questão torna-se ainda mais grave no que a crianças diz respeito. Em países como os EUA, há médicos a receitar medicamentos hormonais fortíssimos como os bloqueadores de puberdade com base em diagnósticos acientíficos de meninos que, porventura, possam ser mais sensíveis ou gostar de brincadeiras mais típicas de menina e vice-versa. Além do óbvio abuso infantil que isto representa e que, esperemos, não seja imitado por cá, é mais um sinal de contradição de uma ideologia que diz que os “papéis de género” são meras construções social, de onde se intuiria que nem todos os meninos do mesmo sexo têm de ter interesses e brincadeiras semelhantes.

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