Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja

Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa

Move-nos, nesta Carta, o desejo de ajudar os católicos do nosso País e tantos outros portugueses a abraçar os principais desafios com que hoje se deparam no mundo em geral e especialmente em Portugal e na Europa.

Fazemo-lo à luz dos princípios da doutrina social da Igreja, que é a um tempo perene na solidez desses princípios e rica de contínuos aprofundamentos que vão acompanhando os chamados sinais dos tempos. Revela, por isso, uma constante atualidade e pode dar um contributo fecundo para os rumos da atual sociedade.

As nossas reflexões e sugestões estão organizadas segundo princípios que se encontram na base da Doutrina Social da Igreja: dignidade da pessoa; bem comum; solidariedade; subsidiariedade.

1. Toda a vida humana tem igual valor

A afirmação do valor fundamental da vida baseia-se no que o II Concílio Ecuménico do Vaticano assim enuncia: «A pessoa é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais»[1]. Assenta na visão bíblica e cristã do ser humano criado à imagem e semelhança de Deus e chamado a uma vida de comunhão com Ele. É por isso que cada pessoa tem a dignidade de ser única e irrepetível e não pode ser reduzida a simples objeto ou instrumento ao serviço de fins que lhe sejam alheios.

Tal dignidade deriva do facto de ser membro da espécie humana e não de qualquer atributo ou capacidade que possa variar em grau ou possa ser adquirido ou perder-se nalguma fase da existência. Depende do que ela é, não do que ela faz ou pode fazer. Ou seja:

  1. não varia em grau, conforme maiores ou menores capacidades cognitivas;
  2. não depende da raça, do sexo ou da idade nem se vai adquirindo progressivamente até à idade adulta, mas existe plenamente desde o início da vida;
  3. não deixa de o ser por deficiência ou doença, físicas ou mentais, por muito profundas que sejam;
  4. não se perde com a idade avançada, a demência ou o estado comatoso.

Perante isto, exige-se até uma maior proteção do ser humano mais vulnerável, por si mesmo ou pela fase da existência por que passa: o embrião, o feto, o recém-nascido, o deficiente profundo, o demente, o doente em fase terminal. Podemos mesmo dizer que o grau de humanidade de uma civilização se pode aferir pelo cuidado com que esta trata os seus elementos mais débeis.

1.1. Direito à vida na sua gestação

Foi há pouco comemorado o septuagésimo aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, um marco civilizacional da máxima importância. A Constituição da República Portuguesa estatui, no artigo 16.º, n.º 2, que as normas constitucionais e legais relativas aos direitos fundamentais devem ser interpretadas e integradas de harmonia com essa Declaração.

O primeiro desses direitos é a vida, o pressuposto de todos os outros. Não podemos, por isso, esquecer a frequência dos atentados à vida dos nascituros, através do aborto, mesmo motivado por deficiência do feto, dado que o embrião e o feto são os “mais pobres dos pobres”, como dizia Santa Teresa de Calcutá. É a causa mais frequente de morte provocada em todo o mundo. Entre nós, como em outros países, já muitos se resignaram a esta situação, como se fosse inevitável ou a lei irreversível.

Mas não nos basta continuar a pugnar pela revisão da lei em termos político-jurídicos. Cabe-nos também exigir ao Estado que reforce o apoio às grávidas e a rede de informação sobre alternativas ao aborto. Desenvolvam-se, nesse sentido, formas de evitar que a opção por concluir a gravidez implique, sobretudo nos jovens, abdicar do seu projeto de vida, para não ficarem sós com as consequências da sua decisão pró-vida: sem formação, habitação, meios de subsistência, enfim, sem projeto de vida parental.

Apelamos ainda às paróquias e aos centros de apoio à vida para que criem grupos de acompanhamento e as grávidas não sejam abandonadas à sua sorte, uma vez nascida a criança. A vida em comunidade e o apoio aos mais frágeis concretiza-se numa solidariedade ativa, em que a Igreja aja como verdadeira mãe.

1.2. Direito à vida na fase do seu crescimento

Ao respeito pelas crianças, entre os seres humanos mais frágeis e dependentes, opõe-se também, radicalmente, o abuso sexual de que algumas delas têm sido vítimas. Um abuso absolutamente condenável, venha de quem vier, mas muito mais grave se for por pessoas da sua confiança a praticá-lo.

Entre eles têm estado infelizmente membros da Igreja. Pelos irreparáveis danos que provocam pela total contradição com o amor evangélico de que devem dar testemunho, tais abusos têm sido condenados pela autoridade da Igreja, principalmente pelos últimos papas, com medidas e penas há muito não vistas. Tudo pelo bem que se quer às vítimas, destes e de qualquer outro tipo de abusos: violências, descuidos, abandonos, bullyings, entre outros.

Estamos em total sintonia com o Santo Padre. E comprometemo-nos a tudo fazer para, do mesmo modo, tratar e prevenir tais casos.

1.3. Direito à vida por parte de jovens comprometidos

Como afirma o Papa Francisco, os jovens desejam e lutam por uma sociedade mais justa e fraterna: «Queridos jovens, não olhem da varanda para a vida, metam-se nela, como fez Jesus. Mas sobretudo, de uma forma ou de outra, sede lutadores pelo bem comum, sede servidores dos pobres, sede protagonistas da revolução da caridade e do serviço, capazes de resistir às patologias do individualismo consumista e superficial».[2]

Regozijamo-nos, por isso, com o desejo e a capacidade de muitos jovens de exigirem maior transparência e responsabilidade na gestão da coisa pública, bem como uma mais justa repartição de rendimento, forçando-nos a nós, os mais velhos, a um duro, mas saudável exame de consciência sobre as nossas responsabilidades perante as gerações futuras.

1.4. Direito à vida nas relações familiares

Envergonham-nos estudos que mostram como uma em cada dez crianças em Portugal continua sujeita a castigos de extrema violência física e psíquica aplicados por pais e educadores, em si mesmo crime. De igual modo nos interpela o número crescente de mulheres mortas e de queixas registadas por mulheres vítimas de violência física e psíquica. O fenómeno é transversal a toda a sociedade e atinge números avassaladores.

Temos um particular dever de denúncia e apoio às vítimas. Não podemos continuar cúmplices de um ciclo de violência que se reproduz de geração em geração com as vítimas de hoje a serem provavelmente agressoras no futuro. Nem pode tolher-nos o medo de represálias. As vítimas têm de sentir-se seguras e acompanhadas e os agressores ajudados numa possível recuperação. A mobilização de todos é urgente e deve ser concertada.

Apelamos, neste sentido, à atenção da pastoral familiar, baseada no amor entre Cristo e a sua Igreja, solução mais eficaz e duradoura para tais práticas.

1.5. Direito à vida da parte dos idosos

Registamos um cada vez maior predomínio da população idosa, com os sinais de desenvolvimento e progresso que tal significa, mas igualmente com os custos e problemas que daí decorrem. Entre eles está o da solidão, que é já um grave problema de saúde pública. Contra isso, há que valorizar o contributo próprio dos idosos na nossa sociedade, enquanto depositários de sabedoria e de memória. Diz-nos o Papa Francisco, repetindo que «um povo sem memória não tem futuro».

1.6. Direito a viver até ao fim

Também a eutanásia atenta contra a inviolabilidade da vida humana. É verdade que no ano passado foi rejeitada pelo Parlamento português. Convém recordar a experiência de outros países europeus, com desmandos decorrentes da chamada rampa deslizante, que faz com que, aberta a porta de uma lei pretensamente baseada sobretudo na compaixão, rapidamente se tem contribuído para o uso e abuso da lei, para o descarte dos mais velhos e abandonados, levados assim indiretamente a pedir a morte para fugir à solidão.

A dignidade da pessoa não pode derivar da sua capacidade de trabalho, produtividade ou estatuto perante o mercado. É, pois, urgente que se combata toda a ideologia que vê nos idosos, porque incapazes de trabalhar, um peso a rejeitar.

O direito à vida, que abarca todas as fases e situações da existência humana, é também negado quando se recusa o acesso à alimentação básica e a tratamentos de saúde, quando não se promovem os cuidados continuados e paliativos. Deve ser reforçado pelo direito social, que impõe ao Estado ações que garantam a todas as pessoas o acesso aos bens necessários para a sobrevivência.

1.7. Direito à vida na liberdade religiosa

Merece particular destaque a liberdade religiosa, devido à primazia que muitas pessoas dão à religião, para encontrarem sentido pleno para as suas vidas. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo 18.º, consagra esse direito nas dimensões individual e comunitária, particular e pública.

São hoje muitos e graves os atentados à liberdade religiosa, que atingem em grande medida os cristãos[3]. Felizmente não é assim em Portugal. Importa, porém, alertar para tendências, ainda existentes, que pretendem relegar a expressão religiosa para espaços privados, confundindo a sã laicidade com o laicismo hostil à religião. Nisto se insere também, em Portugal e outros países, a imposição de ideologias contrárias à ética cristã, no âmbito do ensino, saúde ou outros, contra a qual há que alargar a possibilidade de invocar a objeção de consciência.

1.8. Direito à vida na sua componente económica

A Assembleia da República declarou solenemente, na sua Resolução n.º 31/2008, de 4 de agosto, aprovada por unanimidade, que a pobreza conduz à violação dos direitos humanos. Ora, Segundo dados do INE em finais de 2018, 21,6% da população portuguesa encontrava-se em risco de pobreza ou exclusão social. A diminuição do desemprego tem contribuído para a redução dessa percentagem, mas persiste a pobreza mesmo entre trabalhadores empregados.

Assim, cerca de 10% dos trabalhadores com emprego não consegue o salário justo que permita ao seu agregado familiar viver dignamente, assegurando a educação dos filhos, o acesso à cultura e à formação, a alimentação, a habitação e o lazer. Os cristãos não podem, por isso, conformar-se com uma ação meramente assistencialista do Estado junto dos mais pobres.

Atenda-se, nesta área, às vigorosas críticas do Papa “economia que mata” e à “autonomia absoluta dos mercados”: a economia, a empresa, os mercados devem estar ao serviço das pessoas, e não o contrário. A busca do lucro é, em si mesma, legítima. Mas já não o será, se conduzir ao sacrifício de direitos fundamentais da pessoa do trabalhador. Pode um despedimento, individual ou coletivo, ser exigido pela necessidade de evitar, a curto ou longo prazo, a insolvência da empresa. Nesse caso, será legítimo como uma forma de salvaguardar ainda postos de trabalho na medida do possível. Mas já não o será se a empresa tem lucros e pretende, com os despedimentos, apenas aumentar esses benefícios. Neste caso, tal decisão não está ao serviço da pessoa humana, mas sacrifica-a.

Mesmo quando se afirma a vantagem de reforçar a competitividade das empresas através de baixos salários, nem sempre o princípio da centralidade da pessoa é respeitado. Não traz benefícios a quem nela trabalha, é desumana.

No mesmo sentido, a empresa também não pode descartar-se dos trabalhadores mais velhos ou mais frágeis, sabendo que, muitas vezes depois de uma dedicação de décadas, vão ficar desprotegidos ou mesmo incapacitados de reentrar no mercado de trabalho crescentemente concorrencial.

A vida económica está a tornar-se cada vez mais dinâmica. Daí a vantagem de maior flexibilidade das relações laborais, sem impedir a estabilidade necessária à constituição de família, à geração e educação dos filhos.

Alegramo-nos com a paulatina ultrapassagem da crise em que, por mais de uma década, o País esteve mergulhado. Reduziu-se o desemprego e criaram-se muitos novos postos de trabalho. O turismo contribuiu para a subida do emprego e ajudou a reequilibrar a balança de pagamentos.

Contudo, o facto de Portugal ter agora as contas públicas aparentemente saneadas e uma dívida que, embora ainda muito elevada, goza da confiança dos mercados, não pode fazer esquecer a sua fraca resiliência a choques externos e a degradação dos serviços públicos, na sequência da quebra de investimento. Assim acontece na saúde e na educação, a par da degradação dos serviços prestados e do nível de carga fiscal mais elevado das últimas décadas.

O Papa Francisco tem, em múltiplas ocasiões, tentado despertar as consciências de todos para um uso contido dos bens ao seu dispor, abdicando de um estilo de vida consumista que se apropria dos bens, devassando os escassos recursos que estão à disposição de todos. Nas famílias, nas escolas e nas comunidades é urgente uma pedagogia da solidariedade, regressando a um estilo de vida sóbrio que valorize o que somos e nunca nos distinga pelo que temos. Que cada um saiba partilhar com os mais pobres o que é novo, criem-se bancos de bens já utilizados e contrarie-se o desejo absoluto de posse e ostentação.

1.9. Direito à vida na sua componente demográfica

A família nasce da aliança das dimensões masculina e feminina, necessária para a educação das novas gerações, para a construção do futuro, para manter a aliança entre gerações e conjugar valores que não caducam com o dinamismo e a novidade.

Por isso, a família, sem deixar de ser um bem para a realização pessoal, no plano afetivo, espiritual ou outros, de cada um dos seus membros, é um bem público e social para a sociedade no seu todo. A saúde e coesão da sociedade depende da saúde e coesão da família. E, por isso, é desta dupla coesão que depende a solução para a mais grave crise social com que hoje se deparam, entre outras, as sociedades europeias: a crise demográfica sem paralelo na história, a não ser a que decorria de guerras ou graves carência[4].

São, por isso, urgentes medidas económicas e sociais de promoção da natalidade. Porém, só por si, são insuficientes, como se vê noutros países. A chave para vencer a crise demográfica situa-se, antes disso, no plano da mentalidade e das opções de vida. É nesse sentido que o Papa Bento XVI fala em «cansaço moral» e «falta de confiança no futuro».[5] Há que acreditar na família como projeto duradouro, assente num compromisso mútuo de doação total, não na volatilidade dos sentimentos. Só nesse contexto se pode situar a decisão de ter filhos. E há que vencer uma mentalidade hedonista que recusa renúncias e sacrifícios que a paternidade e a maternidade necessariamente comportam.

Mas também não podem ignorar-se realidades que hoje objetivamente mais dificultam a opção de ter filhos:

a) A precariedade do trabalho, a que se junta a conciliação entre trabalho e vida familiar, com horários mais ajustados às conveniências da produção do que às da família. Uma paternidade e maternidade responsáveis supõem um mínimo de estabilidade laboral. Não se esqueça que a pessoa humana está inserida numa família e tem naturalmente projetos familiares com exigências próprias. Tenha-se em conta que a empresa só deveria, justificadamente e em situações graves, recorrer à laboração contínua, que implica trabalho por turnos, trabalho noturno e extraordinário ou horários imprevisíveis e repetidamente alterados. O simples aumento dos lucros não pode ser visto como razão suficiente para o uso deste tipo de políticas laborais.

b) As dificuldades no acesso à habitação de jovens casais, em particular nos maiores centros urbanos, com preços de aquisição ou rendas incomportáveis. Em parte, é uma consequência do aumento da procura turística, em si positivo do ponto de vista económico, da oportunidade de aproximação entre povos e da divulgação do património cultural. Mas, no fundo, deve-se também à cegueira da maior rendibilidade. E perde-se a possibilidade de a habitação facilitar então a constituição de uma nova família, ignorada pelas regras do mercado. Há, por isso, que encontrar alternativas, nomeadamente no âmbito da habitação social.

Para tudo isso se exigem ousadia, criatividade e uma largueza de horizontes que vá para além dos interesses de curto prazo. Está em jogo a mais grave crise social das sociedades europeias, cujos efeitos se hão de sentir no futuro, talvez quando já pouco haja a fazer para os remediar.

2. O bem de todos e de cada um sem ser ditadura da maioria

O bem comum é o bem de todos e de cada um. Não é a soma de bens individuais; mas também não é o bem de um todo que se sobrepõe às partes; porque cada parte, cada pessoa, tem um valor por si mesma, é um “todo” por si mesma. Não é, por isso, o bem do “maior número” numa perspetiva utilitarista, de uma maioria que sacrifica bens fundamentais da minoria.

A democracia, que supõe o respeito pela regra da maioria, não pode assentar no seu domínio absoluto. Se num país a classe média constitui a maioria da população e os pobres são minoria e não têm peso eleitoral decisivo, o bem comum exige que os direitos destes não sejam esquecidos ou menosprezados.

Isto vale para quem, por motivos variados, não beneficia das vantagens da globalização económica. Em Portugal, vale, de modo especial, para muitas das regiões do interior, que sofrem a desertificação populacional, agravada pelo encerramento de serviços públicos, que não têm peso eleitoral decisivo e cujos problemas foram evidenciados depois das tragédias dos incêndios dos últimos anos.

Deve ser o critério do bem comum, mais do que o do interesse individual ou do grupo/partido de pertença, a guiar as opções políticas de cada cidadão. E é também a perspetiva do bem comum que deve enquadrar a legitimidade das reivindicações de grupos e classes profissionais que se vão sobrepondo de forma contínua no nosso país.

2.1. O bem comum e a corrupção

Os impostos, sendo justos, são um contributo indispensável ao bem comum. Nota-se algumas resistências face à obrigação de os pagar. Tal omissão, mesmo sendo legal, impossibilitaria a redistribuição de rendimentos em benefício dos mais pobres.

Aqui urge uma pedagogia ativa junto de todos para que se entenda como o que pode parecer inocente coloca em vantagem os que têm mais acesso ao poder. Uma gratificação a troco de um pequeno favor pode ser o primeiro passo para uma cultura que desculpa o suborno, o tráfico de influências e a aquisição indevida de vantagens, até à corrupção, que tanto está a minar a sociedade em que vivemos.

Todos somos responsáveis e a erradicação da corrupção é possível. Para isso, não podemos desvalorizar as consequências sociais dos nossos comportamentos no recurso à “cunha”, à obtenção de vantagens que nos são indevidas e à retribuição de pequenos favores. Temos, cada um, de proceder com a mesma transparência que exigimos a todos na obtenção de um emprego ou na luta por uma promoção, um salário justo ou um prémio laboral. Comprometemo-nos, individual e comunitariamente, a participar mais ativamente num esforço educativo de promoção da cultura da honestidade e da legalidade.

2.2. O bem comum e os migrantes

O bem comum pode ser nacional e universal. Dois âmbitos que não devem ser contrapostos: «Os cidadãos cultivem com magnanimidade e lealdade o amor da pátria, mas sem estreiteza de espírito, de maneira que, ao mesmo tempo, tenham sempre presente o bem de toda a família humana, que resulta das várias ligações entre as raças, povos e nações».[6]

São, por isso, inaceitáveis as correntes inspiradas no “nacionalismo de exclusão” que vêm ganhando força em vários países. Não estamos imunes a um clima de medo e desconfiança em relação aos estrangeiros, bem como o perigo de os encarar como concorrentes a postos de trabalho ou ameaça ao nosso nível de vida, esquecendo que muitos de nós buscam o mesmo estatuto e nível de vida noutros países.

Neste ponto vale, por isso, a pena prestar atenção às várias intervenções do Papa Francisco, entre as quais a Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2018, a propósito das migrações: «Alguns consideram-nas uma ameaça. Eu, pelo contrário, convido-vos a olhá-las com um olhar repleto de confiança, como oportunidade para construir um futuro de paz». Daí a sua insistência em acolherprotegerpromover e integrar, os quatro verbos em que se devem inspirar as políticas dos governos e as ações das sociedades de acolhimento.

Só assim temos migrações seguras, ordenadas e regulares, que podem até contribuir para o desenvolvimento quer dos países de origem, quer de destino dos migrantes.

Veja-se o que, nos últimos tempos, tem acontecido no nosso País. Segundo os dados mais recentes do Observatório para as Migrações, os contributos financeiros dos imigrantes para o Estado português são maiores do que as prestações de que beneficiam. Isto, apesar de para eles ser maior risco de pobreza e privação material.

Para além do aspeto financeiro, podemos ainda usufruir daquilo que o Papa Francisco afirma sobre eles na mesma mensagem: «Não chegam de mãos vazias: trazem uma bagagem feita de coragem, capacidades, energias e aspirações, para além dos tesouros das suas culturas nativas, e deste modo enriquecem a vida das nações que os acolhem». E como resposta a quem receia a perda de identidade no contacto com outras culturas, acrescenta: «Uma cultura consolida-se através da abertura e do confronto com as outras culturas, desde que haja uma consciência clara e madura dos próprios princípios e valores».[7]

2.3. O bem comum e a unidade da Europa

No bem comum está também a chave para superar a crise com que hoje se confronta o projeto da unidade europeia, que os últimos Papas, desde Pio XII, têm encorajado. Uma crise que se deve fundamentalmente a visões parciais e exclusivistas dos interesses nacionais.

Há, por isso, que fomentar o sentimento de pertença a uma verdadeira comunidade que, sem substituir o da pertença à comunidade nacional, tenha com ele alguma semelhança. Tal sentimento só será possível a partir da consciência de uma história, uma cultura e valores partilhados. E, nesse sentido, não se podem esquecer as raízes cristãs da cultura europeia, não tanto como relíquia do passado, mas como património vivo que pode dar frutos no presente. Que isso, porém, não sirva para excluir da Europa pessoas de outras culturas e religiões: estaria simplesmente em clara contradição com a mensagem cristã.

A integração europeia funcionou durante décadas como âncora segura de paz, respeito pelos direitos humanos, defesa da democracia, construção de bem-estar, livre circulação de cidadãos, a par de abertura, hospitalidade e acolhimento de cidadãos de países terceiros, ao abrigo do acordo de Schengen. A Europa comunitária foi ainda, desde a sua fundação, um espaço de construção de uma cidadania comum e de criação de uma consciência ecológica global.

A adesão de Portugal foi, simultaneamente, a concretização de um sonho de progresso e desenvolvimento continuado e uma vacina contra regressos indesejáveis a regimes de cariz autoritário.

A crise económica e financeira de 2008, o aumento da desigualdade dentro e fora do País, a par das alterações dos equilíbrios mundiais entre grandes potências, provocaram na última década mudanças em cadeia. Mudanças essas acompanhadas da explosão de guerras de cariz religioso, do reforço do terrorismo, do novo e crescente papel das redes sociais, sem esquecer a gigantesca crise de refugiados que continuam a abalar a crença no futuro.

Neste momento assistimos a movimentos de desagregação da União Europeia, como o Brexit e o crescente nacionalismo autoritário ou populista, acompanhados da generalização do discurso xenófobo. Assistimos mesmo ao regresso de ideologias neonazis e anti-semitas. O islamofobismo é simultaneamente origem e consequência de novos movimentos de cariz terrorista. A intolerância alimenta-se do ódio, e o ódio alimenta-se do medo, num ciclo vicioso difícil de romper. As próprias comunidades cristãs e os seus templos têm sido vítimas de atentados.

Cabe-nos promover soluções que combatam um ambiente de generalizada violência física, verbal e psicológica, que polui o ambiente e tolda de inútil crispação a relação entre as pessoas. Cabe-nos a nós contribuir para a justiça e a participação cidadã, que deve ser vista como positiva, mesmo quando é protagonizada por jovens e assume cariz inorgânico. O importante é que se abale as consciências no sentido de promover a cooperação, a solidariedade e a promoção económica e social.

3. Cuidar da casa comum

Sobre o princípio da solidariedade afirma São João Paulo II: «A solidariedade é também uma verdadeira e própria virtude moral, não um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos».[8]

A este respeito apraz-nos, antes de mais, registar a sensibilidade e generosidade demonstrada entre nós perante as dores de compatriotas em situações de tragédia. A nível internacional, a mobilização perante a tragédia de Moçambique é o mais recente exemplo da nossa solidariedade. Mas tem de ir além de uma reação emotiva e ocasional e levar a um compromisso duradouro fundado naquela determinação firme e perseverante de que fala o Papa.

3.1. O destino universal dos bens prevalece sobre o direito à propriedade

A raiz do destino universal dos bens reside na vontade do Criador: Deus destinou os bens que criou a todos os seres humanos, sem excluir ninguém. Toda a pessoa deve poder usufruir dos bens necessários ao seu pleno desenvolvimento. Trata-se de um direito inscrito na natureza humana e não ligado à contingência histórica.

Mas, destino e uso universal não significam que tudo esteja à disposição de cada um ou de todos e nem sequer que a mesma coisa sirva ou pertença a cada um ou a todos. E para assegurar o seu exercício equitativo e ordenado dos bens, é necessário um ordenamento jurídico que o determine e especifique.

Por outras palavras: o destino universal dos bens deve articular-se com o direito à propriedade privada. É uma garantia da autonomia pessoal e familiar, um prolongamento da liberdade humana e uma condição das liberdades civis. Estimula a responsabilidade, a criatividade e a laboriosidade. Todos devem ser, nalguma medida, proprietários.

Mas entre o destino universal dos bens e a propriedade privada, é o primeiro desses princípios que deve prevalecer. A propriedade tem uma função social. Deve facilitar, e não dificultar, o destino universal dos bens. Se a propriedade privada serve para o seu titular constituir uma família e sustentá-la, ajudar pessoas desfavorecidas e instituições de solidariedade social está, inegavelmente, a contribuir para o destino universal dos bens. E está também a investir e a criar novos postos de trabalho. A propriedade privada, pelo contrário, contraria o destino universal dos bens sobretudo se serve para simples especulação ou acumulação do supérfluo, ou leva a tornar bens inúteis.

Nesse sentido, compete ao sistema fiscal ter como objetivo, entre outros, precisamente a articulação entre a propriedade privada e o destino universal dos bens, contribuindo para a redistribuição da riqueza e a atenuação das desigualdades.

3.2. Melhor distribuição de rendimentos para uma sociedade mais coesa

A este propósito, não podemos deixar de referir a desigualdade da distribuição de rendimentos entre nós e noutros países.

Com a globalização económica, cresce a riqueza em termos absolutos, levando muitas pessoas a sair da pobreza, mas crescem também, como nunca, as desigualdades. [9] Os seus níveis vão hoje muito além do necessário para estimular o crescimento económico e recompensar o esforço e o mérito. Traduzem-se numa desigualdade não apenas de resultados, mas de oportunidades, um desnível que, à partida, impede ou dificulta a muitos o acesso à educação e ao ensino. Entre os fatores que explicam tão forte desigualdade estão as distorções do sistema fiscal: evasão, “paraísos fiscais”, reduzida tributação dos rendimentos de capitais face aos rendimentos do trabalho.

Uma sociedade com um abismo tão grande a separar os seus membros não poderá ser uma sociedade com um forte sentimento comum de pertença, coesa, unida, solidária e fraterna.

Veja-se a este respeito o que diz o Papa Bento XVI: «O aumento sistemático das desigualdades entre grupos sociais no interior de um mesmo país e entre as populações dos diversos países, ou seja, o aumento maciço da pobreza, em sentido relativo, tende não só a minar a coesão social – e, por este caminho, põe em risco a democracia –, mas tem também um impacto negativo no plano económico com a progressiva corrosão do “capital social”, isto é, daquele conjunto de relações de confiança, de credibilidade, de respeito das regras, indispensáveis em qualquer convivência civil».[10]

3.3. Solidariedade com as gerações futuras no cuidado da criação

À solidariedade estão também associadas a ecologia e o cuidado da criação. É nesse sentido que o Papa Francisco fala de uma ecologia integral, que inclui precisamente a ecologia social na vertente solidária, que afeta especialmente as gerações futuras. As agressões ao equilíbrio ecológico são graves sobretudo nessa perspetiva. O Papa tem, por isso, feito eco de alertas e empenhos de organizações internacionais, academias e grupos da sociedade civil relativos a este problema, em especial no que concerne às alterações climáticas, apoiando a aprovação e implementação do Acordo de Paris. Este é um desafio que implica ações de governos, mas também mudanças de mentalidade e comportamentos, nomeadamente da parte de nós, cristãos.

Diz o Papa Francisco: «Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus todo-poderoso e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros poderes do mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar do Senhor chegando à pretensão de espezinhar sem limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser dominador absoluto da terra, é voltar a propor a figura de um Pai criador e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses».[11]

4. Nem Estado centralizador, nem Estado mínimo

A afirmação em título deriva do princípio da subsidiariedade: «Com base neste princípio, todas as sociedades de ordem superior devem pôr-se em atitude de ajuda (“subsidium”) – e, portanto, de apoio, promoção e incremento – em relação às menores. Desse modo os corpos sociais intermédios podem cumprir adequadamente as funções que lhes competem, sem ter que cedê-las injustamente a outros entes sociais de nível superior, pelas quais acabariam por ser absorvidos e substituídos, e por ver-se negar, ao fim e ao cabo, dignidade própria e espaço vital».[12]

Contraria-se assim a conceção de um Estado omnipresente, monopolista e centralizador, que suprime a liberdade e a consequente responsabilidade das pessoas e dos grupos sociais. Mas contradiz-se igualmente a conceção liberal de um Estado mínimo. Estado supletivo, ou subsidiário, não omisso ou indiferente, mas que regula as iniciativas da sociedade civil em função do bem comum, apoia-as quando o bem comum o exige e supre as suas insuficiências também quando o bem comum o exige.

4.1. Estado, garante da liberdade de educação e de saúde

Neste âmbito, como noutros, o Estado deve apoiar o ensino não estatal. Trata-se de respeitar a liberdade de aprender e de ensinar consignada na Constituição, a liberdade de escolha dos pais, que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 26º, n.º 3), têm a prioridade na escolha do tipo de educação dos filhos. Quando o Estado financia escolas não estatais, não está a desviar fundos públicos para fins privados, está a permitir que a liberdade de escolher essas escolas não fique reservada às famílias de maiores recursos. Em Portugal, é talvez no campo do ensino que há maior distância em relação ao princípio da subsidiariedade.

A baixa mobilidade social da nossa sociedade sugere a necessidade de aumentar substancialmente os meios dedicados à educação e ao sucesso escolar, para os quais o Estado precisa da sã colaboração de todos. Deixar que o ensino não estatal, muitas vezes de excelência, fique reservado aos que o podem pagar é uma forma de aumentar a desigualdade, em vez de a minorar e eliminar.

O Serviço Nacional de Saúde contribui notavelmente para a prestação geral de cuidados necessários a todos os cidadãos, devendo, por isso, ser salvaguardado e melhorado, o que não impede, antes se conjuga com iniciativas particulares e sociais, comprovadamente úteis, necessárias e eficazes.

4.2. O Estado e as Instituições Particulares de Solidariedade Social

As iniciativas da sociedade, entre as quais as da Igreja, são marcadas no âmbito da solidariedade social pela proximidade das situações concretas e pela espontaneidade de quem nela intervém. É este, pelo menos, o seu dever ser. Toda a comunidade ganha com isso e não se trata apenas de poupar despesas ao Estado. Sobre isso afirma o Papa Bento XVI: «Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor – todo o homem – tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo, mas de um Estado que generosamente reconheça e apoie, segundo o princípio de subsidiariedade, as iniciativas que nascem das diversas forças sociais e conjugam espontaneidade e proximidade aos homens carecidos de ajuda».[13]

Saúda-se, por isso, a colaboração, neste campo, entre o Estado e as Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), mas não podemos deixar de lamentar as consequências diversas que a crise económica em Portugal teve na sociedade, com milhares de pessoas sem rendimentos económicos suficientes. Nessa crise, que se alargou por vários anos, as IPSS foram o setor social que mais conseguiu garantir os locais de trabalho dos seus colaboradores, assegurou os serviços aos utentes cujas famílias não conseguiam pagar a sua comparticipação e assegurou ainda apoio de alimentação a pessoas e famílias que ficaram sem rendimentos.

Passados dez anos, perante a paulatina superação da crise, são as IPSS que vivem uma situação de preocupação quanto ao futuro do serviço que prestam, devido à dificuldade económica que atravessam. Aumentaram os encargos sociais para o seu funcionamento e reduziram-se as receitas, em virtude da fragilidade social com a diminuição e envelhecimento da população. Em média, 58% dos custos de funcionamento das IPSS são com o pessoal, e em muitas situações com salários baixos. Também tem havido atrasos da Segurança Social na entrega das comparticipações. O conjunto das diversas dificuldades tem como efeito que 40% das IPSS se encontram financeiramente deficitárias.

A relação de cooperação das Instituições da Igreja com o Estado, deve acontecer segundo os princípios da lealdade e transparência, no respeito pelas regras estabelecidas. Neste sentido, estamos abertos ao diálogo para encontrar soluções de viabilidade de continuação dos diversos serviços de apoio às pessoas e famílias.

Conclusão

Com esta reflexão orientada pelos grandes princípios da doutrina social da Igreja, queremos contribuir para um melhor discernimento sobre as realidades do nosso País e da Europa, numa altura em que somos chamados a participar através do voto em eleições europeias e nacionais, visando a construção de uma sociedade mais justa e fraterna.

Fátima, 2 de maio de 2019

[PDF]

[1] CONCÍLIO ECUMÉNICO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 25.

[2] FRANCISCO, Exortação Apostólica Christus vivit, n. 174.

[3] Veja-se o Relatório 2018 Liberdade Religiosa no Mundo da Fundação Ajuda à Igreja que Sofre.

[4] Segundo dados da PORDATA, o índice sintético de fecundidade em Portugal era, em 2017, de 1,37 (um dos mais baixos da Europa e do Mundo), quando o necessário para a renovação de gerações seria de 2,1 (valor que deixou de ser atingido em Portugal desde 1982). Estudos da FFMS sobre as causas da fecundidade apontam, contudo, para que o número de filhos tido por” ideal” e “desejado” seja o de pelo menos 2.

[5] BENTO XVI, Carta Encíclica Caritas in veritate, n. 44.

[6] Concílio Ecuménico Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 75.

[7] FRANCISCO, Discurso aquando da visita à Universidade Roma Tre, 17-02-2017.

[8] SÃO JOÃO PAULO II, Carta Encíclica Sollicitudo rei socialis, n. 38.

[9] Um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), intitulado In it together – why less inequality benefits all, de maio de 2015, mostra como os níveis de desigualdade atingem atualmente o máximo dos últimos trinta anos. Na década de 80 do século passado, a proporção entre os recursos dos 10% mais ricos e os 10% mais pobres era de um para sete. Hoje é de um para dez.

[10] BENTO XVI, Carta Encíclica Caritas in veritate, n. 32.

[11] FRANCISCO, Carta Encíclica Laudato Si’, n. 75.

[12] Catecismo da Igreja Católica, n. 186.

[13] BENTO XVI, Carta Encíclica Deus caritas est, n. 28.

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